Escola sem partido, ideologia de gênero e esquerdismo
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Escola sem partido, ideologia de gênero e esquerdismo

18 de janeiro de 2018
Escola sem partido, ideologia de gênero e esquerdismo

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Quando, trinta anos atrás, o saudoso poeta cazuza escreveu que seu “partido é um coração partido”, vivia-se o clima da redemocratização com a Constituinte de 1988, ao passo que uma ampla desilusão ideológica com o hoje chamado “socialismo real”, as vésperas de sua queda talvez ajudem a compreender o porque do cantor clamar por uma “ideologia para viver”. Num Brasil de desilusões com a própria renascente democracia que não havia concedido ao povo suas tão clamadas “Diretas já”, contribuíam para que artistas como ele preferissem adotar uma postura suprapartidária (bastante cômoda quando se pensa que o lugar social do Cazuza era  privilegiado) que se materializou numa capa do LP “Ideologia” que marcou época e causou polêmica  ao criticar, simultaneamente, o comunismo soviético, o capitalismo de consumo e o fascismo sionista.

Recentemente vi uma entrevista do Gregório Duduvier onde ele dizia que não era filiado ao PT, mas que, se defender os direitos humanos, defender a democracia, os valores de igualdade e fraternidade, justiça social, for ser petista, então sim, ele era, nesse sentido, petista. Me vejo numa situação simular, apesar de ter votado em Lula e Dilma, Fátima e Mineiro, Divaneide e Hugo, não sou filiada ao partido dos trabalhadores, mas quando me vejo confrontada com o fato de que, é somente nos âmbitos dos partidos de esquerda como PT, Psol, PC do B, e mesmo PDT e PSTU, que tem se pautado um debate que tem preocupação em resguardar os direitos políticos da minorias, a segurança alimentar dos desvalidos, o direito à educação e à cultura como patrimônio de todos e não só de quem pode pagar, a democratização da mídia, dentre outros temas nevrálgicos para nossa sociedade, que de fato, concluo que preciso votar em políticos desses partidos, lamentando que seja somente no âmbito do dito “esquerdismo” que esses valores sejam cultuados.

Era pra se ter discordância entre direita e esquerda sobre formas de governar, estratégias politicas de gerir o Estado, e não em temas que são básicos para os direitos humanos como direitos LGBT, das mulheres e das pessoas que usam drogas, por exemplo. Isso era pra ser geral, todos deviam ser a favor da dignidade humana de pessoas que sempre foram excluídas  e não somente os partidos de esquerda, por isso volto a dizer, não só voto nos partidos de esquerda, especialmente o PT, devido a qualidade dos seus quadros e seu potencial eleitoral um tanto superior, como posso dizer que a “minha ideologia” é sim o que hoje um tanto pejorativamente falando vem sendo chamado de “esquerdismo”.

Dito isso gostaria de dizer também o seguinte, não foram os “esquerdistas” que inventaram as desigualdades e injustiças sociais, de gênero, de classe, de toda ordem, apenas em suas (nossas) pesquisas, e militâncias temos arduamente denunciado tais violações.

É chocante o nível de manipulação da informação, do discurso, perpetrado por grupos políticos de direita, fascistas mesmo, a partir da patrulha ideológica do famigerado projeto “Escola sem partido”. Chega a ser risível a ideia de que a escola antes “não tinha partido”. A escola sempre teve partido, e sempre teve “ideologia de gênero”. O partido da escola era a opressão, herança de uma escola excessivamente militarizada que ganhamos da ditadura militar. A ideologia de gênero da escola sempre foi o machismo, o binarismo de gênero. Desafio qualquer um dos meus leitores, mesmo aqueles héteros e socialmente inseridos, a lembrar-se de seus tempos  de escola e me dizerem que não guardam nenhum trauma dessa vivência.

A escola sempre foi um lugar excludente, heteronormativo, que expulsava e excluía os pobres, os diferentes, os não binários, os “especiais” (eufemismo para excluir toda ordem de pessoas com limitações físicas ou mentais temporárias ou permanentes). Ai nos últimos 30 anos, em média, começou-se um movimento de rever o lugar da escola, o sentido da educação, fazendo-a caminhar para arranjos e soluções não violentas e que promovam a inclusão e a justiça social no sistema educacional, ideal de vida de milhares, talvez milhões de educadores Brasil afora, especialmente aqueles que leram e partilham do legado da obra do grande Paulo Freire, o pensador brasileiro mais citado, lido e pesquisado no exterior e que recentemente teve seu título de patrono da educação brasileira contestado pelos “coxinhas” que julgam ter mais autoridade intelectual para definir a importância de Paulo Freire  do que a ONU  e algumas das mais proeminentes Universidades do mundo como Harvard, Cambridge e Oxford que lhe homenagearam com o honroso título de Doutor Honoris Causas.

Quando esse movimento, de maneira ainda embrionária, começou a mudar a cara da sociedade brasileira, superando vícios de linguagem e de comportamento, construindo legislação específica de inclusão seja por cotas raciais, sociais, e agora até mesmo por gênero ai os fascistas raivosos, decidem que estamos “doutrinando a escola numa ideologia esquerdista”.

Tal ideologia esquerdista teria criado a diversidade de gênero, afinal, antes não se via, não se ouvia, não se liam, relatos onde aparecessem ostensivamente, senão de maneira marginal e estereotipada salvo raras representações, a realidade objetiva da diversidade, sexual, étnica, religiosa, de crença e etc. Evidente que não assisto o programa do Ratinho, mas a repercussão de sua mais recente LGBTfobia chegou a mim através das redes, claro. Declarou  o apresentador, de um programa no mínimo de mal gosto, pelo twiter, numa referência ao personagem homossexual cangaceiro da série exibida há duas semanas pela Globo, que “hoje em dia se inventa de tudo, se põe gay em tudo, naquela época não tinha gay não”.

Tinha sim Ratinho, inclusive no cangaço especificamente mas ai seria demais esperar que um apresentador de um programa do nível do Ratinho houvesse lido Guimaraes Rosa. Mas o fato é que tinha “gay” no cangaço, e em todo canto, desde sempre, afinal, a homossexualidade e a transexualidade “sempre” existiram como dados objetivos acerca do gênero e da sexualidade dos indivíduos. Senão como hoje conhecemos e nomeamos, mas o fenômeno das sexualidades dissidentes não é algo de hoje, vem perpassando a história na verdade com graus variados de permissividade e visibilidade. Mas e por que antes não era visto? Por que era invisibilizado, muitas vezes a força. LGBTS e mulheres considerados moralmente dissidentes foram durante muito tempo e em grande medida até hoje, postos em asilos, hospícios,  internadas a força em clinicas de reabilitação de todo tipo (especialmente as ditas cristãs), violentados, mortos; apagados da história em todos os sentidos, nossas pesquisas e militâncias só fizeram, volto a afirmar, dar voz e vez a tais grupos a ponto de poderem lutar com melhores armas pelas suas vidas.  Mas claro, deve ter sido nós  os“esquerdistas” que inventamos a homossexualidade e queremos converter todos a ela e isso é uma “ideologia de gênero”, uma visão ideológica contaminada, a esquerda.

Mas o apresentador Ratinho usar sua tribuna numa TV aberta (concessão pública diga-se de passagem) para doutrinar pessoas de baixa instrução na ideologia de direita, no fascismo, ai não é   doutrinação ideológica? E ainda mais vindo de um senhor que tem fortes interesses na política visto que seu filho concorre ao governo do Paraná por um partido de direita (PSC) e tudo isso é “normal”, não existe viés ideológico ai?  Um cara que tem alcance na mídia lança o filho na política com uma plataforma fascista, promovendo uma cultura de ódio a partir do espaço midiático público, mas quem faz doutrinação ideológica é quem ensina nas escolas,  que se deve respeitar a dignidade, integridade física, e direito de existir de outros seres humanos? É isso mesmo produção?

E aqui chegamos na grande questão, a  grande e absurda questão. Num pais campeão de injustiça social, com passado escravocrata, que mais mata LGBTS e mulheres no mundo, com a terceira maior população carcerária do globo, 40% dela sequer julgada, num Brasil que é governado por corruptos pegos pela própria palavra como Temer e Aécio, o que querem fazer é criminalizar a pratica profissional libertaria de uma categoria que é a  mais penalizada e menos reconhecida das profissões e ao mesmo tempo alicerce de todas as outras: o professor.

Para os integrantes do movimento “escola sem partido” nós praticamos uma “ideologia de gênero” que perverte os valores da família e concede direitos especiais aos LGBTS. De fato praticamos uma ideologia de gênero sim, temos sim um “partido”. Meu partido, minha ideologia de gênero, são o respeito a diversidade de toda ordem (exceto o culto ao fascismo que tem que ser crime), o respeito à dignidade humana, o direito dos que não tem direito de terem direito.  Vou utilizar como exemplo uma das ações mais criticadas pelos coxinhas na agenda da nossa “ideologia de gênero”, a criação de banheiros sem gênero, por exemplo. Em uma ampla campanha difamatória falaram que se tornariam espaços de promiscuidade e violência sexual (não existem registros de ataques ou incidentes desse tipo donde foram instalados tais banheiros). E, é importante que se diga, não queremos anular a existência dos tradicionais banheiros masculinos e femininos. Queremos que quem se sente à vontade no banheiro feminino, como mulher, vá nele, e quem se sente à vontade como homem, vá ao banheiro masculino mas aquelas pessoas que não se sentem seguras para usar um ou outro dos banheiros tenha uma opção, porque nos transexuais também precisamos fazer xixi e não queremos sofrer violência porque estamos sanando uma necessidade fisiológica que não tem gênero, afinal, necessidade fisiológica atinge seres humanos independente de seu gênero e orientação sexual o que me leva a questão que anula a crítica de pessoas que dizem que “tanta coisa importante pra se fazer e o povo pensando em fazer terceiro banheiro”. Sim, estamos pensando nisso, porque sem isso um número bem  grande de pessoas (talvez a população brasileira de transexuais e travestis já passe de 1 milhão de indivíduos) vai estar sujeita a ser violentada no espaço público toda vez que precisar ir ao banheiro (falo por experiência própria inclusive).

Quando uma travesti ou transexual tenta ir ao banheiro no sistema binário é geralmente um momento tenso, nunca sabemos de acordo com a “ideologia” do local se seremos agredidas  e expulsas do banheiro ou se poderemos, em paz, fazer um xixi. Qual o privilegio nisso MBL? Se vocês dizem que o movimento LGBT, os esquerdistas, fazem ações como essa para produzir privilégios para os LGBTS me expliquem qual o privilégio de se fazer um xixi em paz???

Não queremos privilégios, queremos igualdade, quais héteros sofrem violência somente por precisar usar o banheiro? Nenhum, correto? E isso que queremos também, que fazer um xixi não se torne um tormento, não seja motivo de uma batalha judicial. Enfim,  só queremos não morrer por sermos LGTBS, isso é pedir muito?

Então, finalizo dizendo que meu partido é os direitos humanos, a dignidade humana, a justiça social, a luta contra o racismo, a lgbtfobia e pela legalização das drogas e do aborto, meu partido é a vida das mulheres, dos pobres e dos LGBTS. Minha ideologia de gênero é a libertação das opressões e convoco todos os educadores que acreditam no potencial libertador da educação a não se curvarem diante do escola sem partido e continuarem sua luta por uma “pedagogia da autonomia” bem ao espirito freiriano com o qual concluo agora: “A natureza da pratica educativa, a sua necessária diretividade, os objetivos, os sonhos que se perseguem na pratica não permitem  que ela seja neutra, mas política sempre. É a isto que eu chamo de política de educação, isto é, a qualidade que tem a educação de ser política. A questão que se coloca é saber que política é essa, a favor de que e de quem, contra o que e contra quem se realiza”?

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