Feijão verde: sinal de fartura e gostosura
Natal, RN 25 de abr 2024

Feijão verde: sinal de fartura e gostosura

20 de junho de 2020
Feijão verde: sinal de fartura e gostosura

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Escrevo essa nossa primeira dança, observando o bailado dos coqueirais. Balançam como se ouvissem a sanfona de Carlos André gritando no forró do trio Mossoró.

Falar hoje de feijão verde tem um sabor especial. Essa chuva junina é pura nostalgia, afinal, se passaram quase 10 anos desde que as piabas voltaram a se animar na barragem de Pau dos Ferros e em Gargalheiras. A nossa páscoa de “mei de ano”, quando renascemos, demora muitos anos para se apresentar, mas quando vem é o que há de mais belo.

Chove do vale do Assú ao sertão do Seridó, há fartura finalmente nas lavouras das vazantes desse Rio grande do Norte de meu Deus. Vejo pirâmides de milho verde nas feiras, e ao lembrar de pirâmides, lembro dos Incas que chamavam o milho de semente do sol. Nos feitios das canjicas, pamonhas e pés de moleque, cada família tem sua receita: umas com leite de vaca, outras com leite de coco, com queijo, salgadas ou doces. Tudo isso demonstra nossa relação singular, afetiva e familiar com a alimentação.

Lado-a-lado do milho, símbolo maior das festas da colheita, o nosso feijão verde é sinal-mor de fartura na mesa do povo potiguar. Se faz presente nas nossas mesas, do sertão à capital. Portanto, batizar de Feijão Verde essa coluna remete à unidade que este legume dá à nossa vasta cozinha, sendo assim, uma comida nossa. Nordestina, especialmente das terras dos potiguares litorâneos e de seus combatentes (mas também irmãos e irmãs) dos sertões.

Há diversas preparações que levam o feijão de corda verde: rubacão, baião de dois, arrumadinho etc. Mas reina na nossa preferência o clássico, simples como nosso povo. Cozido na água e sal, ligeiro, adiciona-se folhas de coentro picadas e finaliza-se com nata ou manteiga da terra. Cubos de queijo coalho também podem se agregar. O resultado é um feijão limpo e perfumado, com sabor terroso e levemente ácido.

Obviamente, só terá o resultado esperado se for de boa procedência e não me venham com “feijão verde congelado”, por Deus. Acompanhado de uma boa macaxeira cozida e carne de sol frita ou assada, habita os devaneios da gula de nosso estomago, os odores da afetividade e os sabores das lembranças e da alegria.

A escassez nos aproxima e a fartura nos completa. Qual sentido da fartura se não o “compartilhar”? Nossos natais, semanas santas e acima de tudo o São João, sempre foram intrinsecamente ligados ao ‘compartilhar’ das nossas comidas, uns com os outros.

Irônico que essa fartura venha justamente no tempo em que o psicanalista Christian Dunker chama de “baixada de bola universal”. No tempo em que fomos obrigados a nos olharmos de forma visceral. No caso do Brasil, mais ainda. Talvez por isso a não tão nova ideia de pesquisar e escrever sobre os nossos ricos, únicos e diversos hábitos alimentares se tenha feito presente com mais veemência.

Notas sobre o feijão verde

Aqui tratamos do Vigna unguiculata, o nosso feijão de corda. Plantando nas vazantes dos açudes e rios, além de servir como “bate esteira” das lavouras de milho serve também de alimento, tanto na vagem quanto na semente.

Não há consenso na literatura sobre a sua origem. Diverge-se se é do Peru ou da África Tropical, mas o fato é que foi o feijão que melhor se adaptou à nossa realidade laboral e de terras disponíveis.

Câmara Cascudo, também adepto dessa maravilha, aponta que a família Vigna, do feijão fradinho, tem origem portuguesa. Daí a adaptação do uso do feijão de corda para a nossa culinária, bem como o fato de o comermos verde ou em vagem (hábito português quando falamos de favas, que será tema em outro momento: a imensa impressão cultural da cozinha portuguesa na nossa).

Oswaldo Lamartine em seu “Conservação de alimentos nos sertões do Seridó” discorre: “A debulha do feijão, mais que qualquer tarefa da lavoura, parece ser a mais festiva reunião daquela gente. Principia nas primeiras horas do escuro e se espicha pela noite a dentro, acoitando historias e evocações dos mais velhos e o namoro da rapaziada...”. Conclui-se então que o feijão se transformava em um forte símbolo das relações socais de nossos antepassados interioranos.

Se diz ainda que o feijão substituía o trigo na preparação de bolos e pães, novamente a influência portuguesa em boa parte de nossa alimentação, pois esse também era um hábito comum nas terras de além-mar.

Eu, a comida e a coluna

Essa história começa nas ruas Jeronimo Rosado e Padre Elesbão em Mossoró, onde minhas avós, sempre me permitiram estar nos “cóis” delas quando estavam na cozinha, sempre me contando belas historias enquanto faziam suas preparações e prontas para responder a todos os meus inúmeros, e por vezes infundados questionamentos, sem nunca perderem a ternura.

Uma história que pode parecer trivial para quem faz parte do mundo gastronômico, onde as figuras maternas, na maioria das vezes, estão diretamente ligadas ao nosso desejo de fazer a ‘cozinha’. As nonas, as avós, tias e mães que sempre nos alimentaram e nos deixaram prontos para o mundo.

Tive o privilégio de morar perto de feiras e mercados, que sempre habitaram o meu imaginário ao ponto de me fazer visitar dezenas ao longo da vida. Essa coluna falará de nossa alimentação, mas sem se ater unicamente ao processo de preparação de nossas receitas. Obviamente também conversaremos sobre elas ao longo do tempo, mas acima de tudo falará de nossa relação enquanto seres potiguares que somos com a comida, em tempos de escassez e fartura.

Agradeço ao espaço que o Saiba Mais me abre, permitindo a que um curioso nato compartilhar as suas angústias e emoções gastronômicas, para assim contribuir na teia de pesquisas que existem sobre o assunto.

Na pesquisa figuras incríveis seguraram a minha mão, como se me conhecessem desde a época que jogava bola na beira do rio Assú. Agradeço à grande e curiosa pesquisadora Adriana Lucena, de senhor Jardelino, ao Professor Muirakitan Macedo que me deleita em disponibilidade, a Raimundo de Janduís, a Jandui Medeiros, à paciência de Warirson Balbino, a Bruno, Cynthia e Cipriano do Cabugi, a titio Paulinho, Donizete Lima, Bidu e Vanda Moura, a Tercio Pereira, Crispiniano Neto e Fernando Mineiro que me apresentam belezas escondidas do sertão, a Arthur Galvão encantador de lutumias, a mamãe e vovoinha, Caio San e Marcos Aurélio que me provocaram, e a tantos outros amigos e familiares que me mandam historias e pedem receitas.

Registro aqui a minha gratidão.

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