Foi com amor?
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14 de agosto de 2020
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Quando escrevi aqui sobre como o cruzamento entre humanos modernos e Nenaderthais pode ter influenciado a percepção de dor em alguns de nós, tomei a liberdade poética de imaginar que aqueles encontros foram amorosos. Mas logo recebi alguns comentários discordando, pessoas com a opinião de que o DNA de outros hominídeos que carregamos foi fruto de sexo sem consentimento. Foram no total cinco pessoas, independentes. Achei curioso esse fenômeno e resolvi explorá-lo. Vamos ver onde chegamos. Mas se preparem, lá vem um bocado de especulação.

Todos nós herdeiros da colonização nas Américas sabemos que esse nosso passado recente foi construído às custas de muita violência contra os povos originários, que já estavam por aqui, e contra as pessoas que foram escravizadas na África e trazidas para cá. A natureza violenta desta relação está gravada em nossos DNAs. Isso porque, apesar do DNA que está no núcleo das nossas células ser uma herança da metade do genoma de cada um de nossos pais, o DNA nas nossas mitocôndrias vem sempre das nossas mães. Assim, graças a imigração massiva de colonizadores europeus homens, a população brasileira possui bastante DNA nuclear europeu, mas muito menos mitocondrial. No caso da nossa colonização, a baixa participação feminina europeia na formação da diversidade genética brasileira está correlacionada com ocorrência de relações violentas. Mas mantenhamos em mente aqui que estamos falando da história moderna, com registro falado e escrito.

Já viram que estou tentando dar um pulo lógico, não é? Pois lá vai. Será que na hipótese de os encontros sexuais ancestrais terem sido violentos, podemos supor que eles foram praticados por um homem H. sapiens contra uma mulher Neanderthal? Bom, aqui nasce uma fraqueza do argumento. Eu estou supondo que como a violência sexual praticada hoje em dia, pelo menos a criminal, em sua maioria é praticada por homens, que podemos projetar essa desigualdade para um passado pré-histórico. Dado isso, o que dizem então as nossas mitocôndrias em relação aos nossos encontros com outros hominídeos?

Os seres humanos que deram origem aos Neanderthais e Denisovans migraram para a Europa e Ásia há pelo menos 500 mil anos. Essa data é confirmada pelas diferenças entre os seus DNAs nucleares (cálculo de número de mutações por tempo). Mas não pelo DNA mitocondrial. Quando comparados os DNAs mitocondriais dos hominídeos, encontramos uma divergência mais recente entre humanos modernos e Neanderthais. Qual seria a causa dessa maior similaridade?

Em 2019, Peyrégne e colaboradores publicaram o genoma parcial (nuclear e mitocondrial) de dois Neanderthais com 120 mil anos, um homem na Alemanha e uma mulher na Bélgica. O DNA nuclear dos dois indivíduos mostra uma estabilidade genética entre diferentes populações, mesmo quando comparadas com outros indivíduos mais recentes, de 50 mil anos. Porém, quando eles foram olhar o DNA mitocondrial viram que o do indivíduo da Alemanha era muito diferente. Estas diferenças eram tão grandes que estatisticamente é muito improvável que esta mitocôndria estranha já estivesse perambulando pela população. Ao invés disso, eles propuseram a hipótese de que houve uma mistura com ancestrais nossos há pelo menos 120 mil anos que modificou completamente a mitocôndria desta população. Isso é, em algum momento muito anterior ao tempo das grandes migrações de H. sapiens pela Eurásia, somente há 50 mil anos atrás, uma mulher da nossa linhagem foi até a Europa e transou com um Neanderthal. Um descendente deste casal morreu ali por onde hoje fica a Alemanha e a marca daquele encontro foi encontrada no DNA mitocondrial recuperado de seus ossos.

Obviamente, continuamos sem poder falar muito sobre a natureza deste encontro. Mas sabemos que foi uma mulher H. sapiens a envolvida. Provavelmente não era um grupo grande que migrou. O DNA nuclear H. sapiens foi totalmente diluído dos pedaços que foram recuperados desse homem, nenhum resquício. Isso sugere que foi uma migração esporádica, a introdução de material mitocondrial em uma única geração. Acho difícil sustentar a hipótese de que ela tenha subjugado esse grupo. E por isso, me agarro a ideia poética de que ela tenha sido acolhida por ele.

Lembremos também que esse homem na caverna da Alemanha não é nosso ancestral. Ele era um Neanderthal morfologicamente. A sua história não está relacionada a explicação de como o DNA Neanderthal foi parar em nossos genomas. Provavelmente nesse caso foi um Nenaderthal que foi acolhido em uma população H. sapiens (ou violentado por). Mas fato é que, esse trabalho mostra que pouco sabemos sobre as migrações que levaram aos primeiros encontros. A ideia de que já saímos da África com um exército pronto para violentar Nenaderthais me parece também enviesada por fatos históricos recentes. E finalmente, sim, podemos nos permitir imaginar um cenário mais amoroso.

Referência:

Peyrégne et al. (2019) Nuclear DNA from two early Neandertals reveals 80,000 years of genetic continuity in Europe. Science Advances. https://advances.sciencemag.org/content/5/6/eaaw5873

Leia textos anteriores do neurocientista Eduardo Sequerra no site Nossa Ciência

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