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19 de setembro de 2017
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Há uma máxima que diz que quem não é visto, não é lembrado. Segundo o “oráculo” da vida moderna – o Google – trata-se de um provérbio português. Durante muito tempo não vimos as pessoas com deficiência. Confinadas em suas casas, apartadas das escolas regulares, longe dos postos de trabalho, elas na maior parte do tempo pareciam simplesmente não existir. Se desconhecêssemos as estatísticas oficiais, dificilmente imaginaríamos que elas representam quase ¼ da população brasileira. Mas esse é o dado, no último censo do IBGE, em 2010: mais de 45 milhões de pessoas declararam ter alguma deficiência.

Quero começar por aqui: pessoas. Uma série de designações já foram atribuídas a essa numerosa e invisibilizada parcela da população. Já foram inválidos, excepcionais, deficientes, portadores de deficiência, portadores de necessidades especiais; foi um longo caminho até serem consideradas pessoas com deficiência. Bobagem, né?! Não, não é. Já se imaginou dormir inválido e acordar excepcional? Ou ser “o deficiente”, como se a deficiência resumisse tudo que você é? E se você pudesse escolher portar a sua paraplegia ou cegueira, não optaria por deixar em casa? A gente porta o que carrega, e a deficiência não é um objeto, mas uma condição humana.

O adjetivo especial, por sua vez, ainda recorrentemente usado, além de não dar conta de falar sobre qualquer diferenciação, já que não se constitui como uma característica exclusiva das pessoas com deficiência (ser alguém especial vale para todos e todas, tenham ou não deficiência), traz a ideia de contrapor-se ao que é normal. Certa vez conversava com uma mãe que estava acompanhada de três filhos e ela me dizia que um deles era especial; e os outros dois? Perguntei. O fato é que tenho, por exemplo, uma necessidade especial de ouvir música ao acordar, e você se parar para pensar vai lembrar de alguma também.

Percebamos que de todas as designações, essa é a primeira que traz o substantivo (pessoa) antes de sua característica (com deficiência). É então a situação de deficiência sendo colocada em seu devido lugar, o de mais um atributo dentro da diversidade humana. Há, pois, pessoas negras, idosas, altas, gordas, homossexuais e com deficiência, todas elas são, antes, pessoas/sujeitos de direitos. Não se trata aqui de preciosismo linguístico ou mesmo de considerar que a eventual utilização incorreta de quaisquer desses termos represente necessariamente a manifestação de um preconceito. Trata-se sim de compreender que a linguagem atribuída às pessoas com deficiência reflete a percepção social que lhes é conferida.

A deficiência foi durante muito tempo compreendida pelo enfoque biomédico da doença/anomalia - cura/reabilitação. O modelo médico da deficiência enxerga o indivíduo como o problema e a deficiência como um desvio da normalidade humana. A deficiência era, pois, enxergada como tragédia pessoal, como aquilo que não deu certo, que não se adequa ao padrão. Nessa perspectiva, a pessoa com deficiência deveria ser alvo da intervenção clínica com vistas a alcançar o mais alto grau de “normalização” possível, que determinaria o seu lugar na sociedade.

Em reação a esse modelo e a partir da organização das pessoas com deficiência, surgiu o chamado modelo social da deficiência. Nessa perspectiva, a deficiência não é compreendida como um defeito ou problema individual, mas como uma questão eminentemente social de falta de capacidade da sociedade de conviver e adaptar-se a diversidade. A partir dessa percepção, a deficiência passa a ser compreendida como uma experiencia resultante da interação entre as características do indivíduo e as condições que a sociedade oferece no lidar com a diferença.

Exemplificando, se uma pessoa cadeirante não consegue exercer o direito de ir e vir por falta de acessibilidade nas calçadas, o problema está nas calçadas e não na pessoa. O objeto de intervenção deve ser arquitetônico e não clínico, e o problema deve ser transferido da pessoa para a sociedade. A adoção do paradigma do modelo social não pressupõe o abandono da reabilitação e dos tratamentos médicos que algumas pessoas (com deficiência ou não) possam requerer. Mas tira dessa condição humana a responsabilidade exclusiva de viver com equiparação de oportunidades, e cobra do Estado e da sociedade essa garantia.

Essa mudança de paradigmas foi expressa na moderna conceituação de deficiência presente na Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU, ratificada pelo Brasil em 2008 com status de emenda à Constituição, sendo o único documento internacional de direitos humanos a gozar dessa estatura em nosso país, nos termos do § 3º do artigo 5º da Constituição Federal, que prevê que: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais. ”

A Convenção diz que “a deficiência é um conceito em evolução que resulta da interação entre pessoas com deficiência e as barreiras devidas às atitudes e ao ambiente que impedem a plena e efetiva participação dessas pessoas na sociedade em igualdade de oportunidades com as demais pessoas”. E conceitua pessoas com deficiência como “aquelas que têm impedimentos de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, os quais, em interação com diversas barreiras, podem obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas”.

A deficiência deixa de ser encarada como uma matéria de ordem médica e passa a ser vista a partir dos direitos humanos, interseccionada por questões de gênero, raça, classe, ciclos de vida, diversidade sexual, entre outras. Dentro do campo dos direitos humanos, porém, esse segmento ainda é negligenciado e as pessoas com deficiência ainda enfrentam muitos desafios para serem visíveis na sociedade. Já notaram, por exemplo, que há banheiros femininos, masculinos e para pessoas com deficiência? É como se elas não tivessem distinção de gênero e fossem assexuadas.

Dentro do próprio movimento essas intersecções foram até hoje pouco exploradas. Quando se fala na diversidade desse segmento, pensa-se quase que exclusivamente nas áreas de deficiência: física, sensorial, intelectual, psicossocial e múltiplas. Nos anais das três Conferências Nacionais (2006, 2008 e 2012) é possível constatar a inexistência de recortes de gênero, por exemplo, dando conta da ausência de transversalidade na abordagem das questões.

Somente na IV Conferência, ocorrida em 2016, a transversalidade apareceu pautada, inclusive com um eixo em seu temário denominado: gênero, raça e etnia, diversidades sexual e geracional. Era mais um passo importante sendo dado. As pessoas com deficiência são negras, índios, mulheres, crianças, gays, lésbicas, idosas e passavam a se reconhecer e se afirmar em sua diversidade. Quantos cruzamentos tão óbvios quanto interessantes passariam a ser problematizados? Como movimentos que nunca dialogaram poderiam se reconhecer irmãos?

Pessoas com deficiência e idosas, na luta pela acessibilidade; pessoas com deficiência e LGBTs, afirmando sua existência como expressões da diversidade humana e fazendo frente as tentativas de patologização e de “cura” dos seus modos de estar no mundo; mulheres com deficiência e o movimento feminista, no reconhecimento das especificidades que geram contextos de maior vulnerabilidade, opressão e violência. Dia 21 de setembro é o Dia Nacional de Luta das Pessoas com Deficiência e esse é um convite a que enxerguemos elas assim, como pessoas.

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