Joker e o Pato
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Joker e o Pato

8 de junho de 2020
Joker e o Pato

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Logo no início de Joker (2019), de Todd Phillips, o protagonista se olha no espelho enquanto movimenta com os dedos a boca como que reproduzindo as máscaras teatrais clássicas da tragédia e da comédia. Quando os dedos seguram a boca na posição do riso, os olhos lacrimejam. Essa inversão entre a expressão e a reação motora do corpo é uma mecânica que também se repete na sua resposta física aos estímulos provenientes de episódios de interação pessoal do seu trato cotidiano. O fato de involuntariamente rir em situações que socialmente se espera outro comportamento é-lhe tão pessoalmente embaraçoso que adquire hábito de andar com bilhetes explicativos de sua condição, distribuindo-os a quem estiver próximo quando essas circunstâncias se sucedem.

Esse transtorno afetivo francamente problemático faz um balé coreográfico com a forma de como ele experimenta a vida social e política. No decorrer da estória, ele assiste, eventualmente, a três típicos homens de bem importunarem uma passageira no metrô. Sua reação involuntária é de uma inevitável gargalhada, o que enfurece os provocadores e lhe rende uma sequência quase mortal de socos e pontapés em seu corpo esquálido, à que ele reage atirando mortalmente nos agressores. Entrevistado, depois, na TV, ele confessa ser o autor dos disparos e desdenha das mortes. Elas acontecem com outros tantos todos os dias, a comoção pública só existe porque envolvia abastados da cidade: - Se eu fosse o morto, se fosse do povo, quem se sensibilizaria?, diz Joker. Mas não se trataria apenas de compaixão seletiva. Antes disso, a própria natureza do que é virtude e vício era, em si, uma escolha arbitrária e seletiva do sistema, no caso, em favor de quem o controla. E que nisso, a maior parte da imprensa, personificada pelo entrevistador de programa de variedades na TV, é cúmplice ao auxiliar na montagem de tal iniquidade narrativa, que finda por homologar vilões e desprezar vítimas, o que acaba corrompendo a própria percepção da realidade pelas massas.

Assim como sua fisiologia se embaralhava nas emoções, o corpo social enxergava os fatos de cabeça para baixo. O protagonista, tanto na condição de homem quanto de cidadão padece, na ordem pública e privada, no conflito entre fatos, versões e paixões.

A singularidade do argumento cinematográfico está no fato de que se a experiência invertida do personagem como homem é algo muito particular, o mal-estar do cidadão é bastante universal. E se as primeiras etapas do roteiro sugerem que seria apresentado o deslinde de uma perspectiva desconforme de uma condição individual aos poucos vai se mesclando uma experiência social que nos é muito familiar, de certos protocolos de dominação que também incluem movimentos de ocultação, naturalização e normalização de um real aflitivo e encolerizante.

Trata-se da ordem própria do ideológico que nos toca de muitas maneiras, mas de nenhuma tão radical quando na instância econômica. Tome-se o caso clínico brasileiro de desigualdade econômica e social. Irrigando isso, o que talvez seja um dos maiores de nossos problemas estruturais, está o sistema arrecadatório de tributos.

Problema grave, mas de entendimento prosaico: se cobra muito imposto de quem tem pouca renda e patrimônio - e pouco, de quem tem muito. Há regressividade tributária, como se diz na técnica. Nessa paisagem brotou há alguns anos um pato midiático, se escalando como símbolo do nosso excesso de impostos. O totem ideológico fazia proselitismo adulterando e invertendo o entendimento sobre o nosso injusto sistema tributário. As classes privilegiadas, aquelas que pouco pagam, foram as que mais gritaram e se indignaram com o que, paradoxalmente, lhes beneficiava. Um rebanho mais numeroso de classe média, num país de meios de comunicação monocórdicos e oligopolizados, metabolizou essa insânia e engrossou freneticamente o protesto incongruente. É curiosa a estética gráfica mais afeta ao cartoon do pato versus a de comics do Joker. O cartoon que é mais usado com o público infantil e tenha servido a um processo de infantilização, no sentido de valorar o fantasioso. E que o comics, com super-heróis que se enfileiram ao nacionalismo americano na D.C., reserve um vilão para dar voz às preocupações populares. Ambos foram exibidos na mesma avenida, um nos cinemas e outro num caricato espetáculo de rua.

O núcleo ideológico do ardil no campo do discurso patológico compreendia o tratamento da carga tributária como algo único e igual para todos. – A carga brasileira é alta. Seguido de uma generalização subjetiva: - Ninguém aguenta mais pagar imposto. “A” carga e “os” contribuintes não são nem se conformam como categorias monolíticas, elas variam conforme renda e patrimônio de cada detentor. A prestidigitação linguística encobria a carga baixa de quem ganha muito e o seu inverso. A impropriedade do enunciado cumpria sua função ideológica de estorvar a compreensão da realidade, atravancar as mudanças estruturais necessárias e legitimar plataformas políticas retrógradas.

Acabar com os privilégios na distribuição da carga tributária é um imperativo para se reequilibrar a economia. Isso foi o que disseram Turgot e Necker em 1789 aos franceses privilegiados de então. Não foram ouvidos e a distensão gerada culminou na população fazendo magret dos privilegiados da época. Tal e qual, a película sumariza as várias fases do modelo clássico de revolução burguesa, no frenesi de uma população insurreta que se volta contra os ricos e celebra Joker, após ele revelar ser o autor dos homicídios dos integrantes da nobreza local.

A austeridade de Gotham City havia cortado a disponibilização gratuita de seus medicamentos e a assistência psicológica. Durante uma consulta à assistente, ele questiona se era ele ou era o mundo que havia enlouquecido. Ela responde que as coisas estavam tensas mesmo.

O historiador Walter Scheidel explica que o grande nivelador de desigualdades tem sido os movimentos violentos, guerras ou grandes catástrofes naturais. Recorre-se, aqui, à história para se reconhecer e não ser surpreendido pelos padrões. Para não haver outras Bastilhas, para se prevenir rupturas sociais violentas, para se moldar a sociedade pelo curso de uma ação civilizada, mantendo as cabeças nos lugares.

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