Justiça reconhece pela segunda vez crime de feminicídio no RN
Natal, RN 28 de mar 2024

Justiça reconhece pela segunda vez crime de feminicídio no RN

15 de fevereiro de 2018
Justiça reconhece pela segunda vez crime de feminicídio no RN

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A Justiça do Rio Grande do Norte aplicou pela segunda vez em três anos a lei do feminicídio para condenar o vendedor de redes José Oliveira Gonçalves por matar, com um tiro de revólver, a ex-mulher dele, Janaína Cosme de Freitas, na frente de uma tia e dos dois filhos. O crime aconteceu em abril de 2017 em Jardim de Piranhas, município distante 300 quilômetros de Natal (RN). O feminicídio é o crime cometido contra a mulher pelo simples fato da vítima ser mulher e só foi tipificado como tal em 2015 após muita luta dos movimentos sociais ligados à defesa da pauta feminista. O primeiro feminicídio reconhecido pela Justiça ocorreu em novembro de 2017, na condenação de Felipe Cunha Pinto, que matou à facadas a ex-esposa Anna Lívia Sales no momento em que ela amamentava um bebê.

O Brasil é o quinto país em feminicídios do mundo. De acordo com dados do Observatório da Violência Letal Intencional (OBVIO),  desde que a lei foi criada, há três anos, 103 crimes de feminicídios foram registrados no RN. Alguns foram julgados, mas a condenação de José Gonçalves é a primeira em que a Justiça reconhece o feminicídio como qualificação de um crime.

A sentença do juiz Adriano da Silva Araújo, expedida em 1º de fevereiro de 2018, é um marco na história do Estado potiguar. Antes da legislação estabelecer o feminicídio como crime qualificado, o condenado pagava uma pena entre 6 e 20 anos de prisão. Após a tipificação, a penalidade subiu e varia agora de 12 a 30 anos de cadeia. José Gonçalves foi condenado a 22 anos e vai cumprir a primeira parte da pena em regime fechado.

O julgamento foi realizado por um júri popular em Jardim de Piranhas. A maioria dos jurados reconheceu o motivo fútil, a prática do crime em contexto de violência doméstica e entendeu ainda que a pena deveria ser aumentada em razão do crime ter sido praticado na frente dos filhos da vítima.

Trecho da decisão histórica do juiz Adriano Araújo destacando como feminicídio o crime qualificado

O juiz Adriano da Silva Araújo acatou a decisão do júri popular e destacou na sentença que “as circunstâncias do crime são reprováveis, uma vez que foi praticado em contexto de violência doméstica”, além do que “as consequências foram gravosas, uma vez que a morte da vítima deixou duas crianças em tenra idade sem mãe”.

Por telefone, o magistrado afirmou à reportagem que os homicídios contra mulheres no contexto da violência doméstica são comuns em razão do machismo, especialmente no interior do Estado. Para ele, a condenação com a sentença deixando clara a qualificação do crime como feminicídio é importante pela mensagem:

- (A sentença) Passa a mensagem de que aquela atitude (o crime) é extremamente condenável. Havia ali um sentimento de posse muito forte. O réu traiu a vítima para ficar com outra pessoa e não admitia que ela ficasse com outras pessoas. É o machismo ao extremo, o “eu posso, mas ela não pode”. Acho essa sentença muito simbólica, a pena muito alta, os jurados reconheceram que o réu matou a ex-companheira por ciúmes num contexto de vida familiar, com todas as circunstâncias e se chegou a uma condenação por feminicídio.

Vítima procurou a polícia antes de morrer

O crime de José Gonçalves teve grande repercussão em Jardim Piranhas, município com aproximadamente 13,7 mil habitantes, na região do Seridó. À frente do caso, o promotor de justiça Vinícius Lins lembra que uma semana antes de morrer, Janaína Freitas chegou a denunciar o ex-marido à polícia, mas nenhuma providência foi tomada em favor da vítima.

- A vítima procurou a polícia civil para relatar as ameaças na semana que antecedeu ao crime, mas não sei porque razão o primeiro registro da queixa não foi à frente e ela morreu na semana seguinte. Todos os testemunhos afirmaram claramente que ele não aceitava a separação.

Enquanto conversava por telefone com a reportagem, Vinícius Lins estava o intervalo de uma audiência na mesma cidade em que o processo tratado também era relacionado a um feminicídio. Segundo ele, a sentença que condenou José Gonçalves a 22 anos de cadeia é fundamental:

- Com essa nova previsão do feminicídio como qualificadora, a lei Maria da Penha ganha força. Em alguns locais ainda faltam programas de assistência à mulher que queiram denunciar agressores porque, às vezes, denunciar significa deixar a vítima à mingua. A sentença é muito importante porque o que a gente percebe é que para algumas pessoas a mulher não pode deixar o homem, pertence a ele e quando ela não quer mais o relacionamento o homem não consegue lidar com isso. E essa relação é algo inconcebível.

Sentença da condenação do vendedor de redes José Gonçalves por matar a ex-mulher

RN registrou 103 casos de feminicídios em três anos

A morte de Janaína Freitas chamou a atenção pela rapidez do trâmite entre a acusação até o julgamento. A condenação saiu em 10 meses. De acordo com dados do Observatório da Violência Letal Intencional (OBVIO), 103 mulheres foram vítimas de feminicídio em 2015 (29), 2016 (37) e 2017 (37) no Estado, uma média de quase três mulheres mortas por mês pelo fato de serem mulheres ou no contexto de violência doméstica.

Segundo a promotora de Defesa da Mulher e Coordenadora do Núcleo de Apoio à Mulher Vítima de Violência (Namvid), Erica Canuto, o número é muito alto. Ela lembra que, em 2016, uma sequência de mortes no Estado chocou a população. Em 11 dias, 11 mulheres foram assassinadas em Natal, Parnamirim, Mossoró, São João do Sabugi, São José de Mipibu e governador Dix-Sept Rosado.

- Estamos vendo os primeiros resultados da lei de 2015 aparecendo. Todos os dias têm denuncia. Em 2016 tivemos 34 feminicídios no Estado, em 2017 já foram 23. Feminicídio é a morte de mulheres pelo fato ou pela condição da vítima ser mulher. O motivo está sendo ligado ao papel socialmente imposto pelo gênero feminino às mulheres.

Canuto explica que o feminicídio está ligado à condição da mulher e também à violência doméstica, de forma continuada.

- Toda violência doméstica é feminicídio, é a morte anunciada. Ninguém morre de feminicídio de surpresa, sempre há um anúncio. É o ciúme excessivo, o controle da roupa curta, das redes sociais, é a violência sexológica, patrimonial.

A promotora classifica como “pedagógica” a sentença contra José Gonçalves. E reforça a importância do fortalecimento das medidas protetivas para as mulheres. Quanto mais protegidas pelo Estado, menos expostas estarão as vítimas. Ela cita o exemplo do caso da mulher agredida pelo ex-noivo na frente de uma criança. A agressão foi filmada e o vídeo viralizou na internet. O agressor acabou preso depois que a mulher fez a denúncia.

- Essa sentença de 22 anos foi muito boa e representa muito para a legislação porque é pedagógica. É um anúncio público que matar mulher em condição de gênero dá uma pena qualificada, a Justiça agiu da forma que se espera. E é importante reforçar as redes de proteção. Nenhuma das mulheres que morreu em 2016 e 2017 estava em rede de proteção. Já aquela mulher agredida e que aparece no vídeo que circulou na internet procurou a polícia e no dia seguinte o agressor foi preso.

Brasil

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), o número de feminicídios no país chega a 4,8 para cada 100 mil mulheres, o que coloca o Brasil na quinta posição no mundo em feminicídios. O Mapa da Violência de 2015 aponta que, entre 1980 e 2013, 106.093 pessoas morreram por sua condição de ser mulher. O número de feminicídios contra mulheres negras é ainda maior. Apenas entre 2003 e 2013, houve aumento de 54% no registro de mortes, passando de 1.864 para 2.875 nesse período. Os agressores, na maior parte das vezes estão dentro de casa. Os familiares são 50,3% dos acusados que cometem os assassinatos. Já 33,2% dos assassinos são parceiros/ex-parceiros.

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