Mãe Desnaturada
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Mãe Desnaturada

15 de maio de 2018
Mãe Desnaturada

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Desnaturada: aquela que se desnaturou. Que não tem os sentimentos considerados como naturais. Desumana. Cruel. Mãe desnaturada: aquela cujo papel exercido não se encaixa no que nos é ditado como o de uma mãe exemplar. Mesmo com todas as mudanças sócio-político-culturais que sacudiram as relações familiares, a condição de vida das mulheres, os arranjos conjugais e etc., ainda é esperado das mulheres que sejam afeiçoadas ao casamento, desejosas da maternidade e mães abnegadas.

Isso é o “natural”. Uma imensa faixa em um shopping center da cidade, grafada com os dizeres “Mãe por Natureza” nos faz lembrar o quanto a dita “natureza feminina” é um clichê deveras cansativo. A constante aproximação da mulher com a “natureza”, a “sensibilidade”, o “instinto” e, portanto, a irracionalidade, é característica de um padrão discursivo que não nos considera seres da cultura, dotadas de desejos próprios e singulares, mas, ao contrário, determina o que temos que querer e como devemos pensar.

A máxima de que “toda mulher sonha em ser mãe” é no mínimo uma simplificação absurda entre o fato de poder parir e querer ter filhos. Mas, é dito: toda mulher sonha em casar-se e ter filhos. Ainda não conheci uma mulher que tenha sido entrevistada sobre seus sonhos, mas essa “estatística totalizante” tem resistido aos séculos. O que a cartilha sobre nossos desejos não dá conta é da continuidade do script.

Em tendo filhos, seria também o sonho de toda mulher os criar sozinha, responsabilizando-se pela quase totalidade das tarefas de educação, cuidado, alimentação, higiene, convívio familiar, saúde, etc.? Claro, me refiro aqui as que dividem, ainda que de modo absolutamente desproporcional, essas funções com alguém. Grande parte está no que se convencionou hipocritamente chamar de “mãe solteira”, uma nomenclatura que responsabiliza as mulheres e oculta a figura do pai ausente. No Brasil, há pelo menos 5,5 milhões de pessoas que sequer têm o nome do pai na certidão de nascimento.

O jogo de responsabilidades imputado às mulheres é violento. Começa antes mesmo da criança ser concebida. Resta às mulheres a responsabilidade exclusiva pela gravidez. São as mulheres que assumem os custos financeiros e de saúde com o uso de contraceptivos que bombardeiam seus corpos; comprimidos diários cheios de hormônio que provocam desde alterações de humor e enxaquecas até trombose, que significa risco de morte. Esses malefícios amplamente conhecidos são em igual escala desconsiderados, pois uma boa mulher deve proporcionar ao seu homem a liberdade de transar sem o inconveniente da camisinha.

Sobre o risco das doenças sexualmente transmissíveis? Pouco importa! No congresso nacional estão debatendo até se temos a obrigação de levar adiante uma gravidez decorrente de um estupro.

O tribunal da maternidade é mesmo perverso. No banco dos réus estão também as mulheres que optam por não ter filhos. Recusar a “natureza materna” ou discordar dos que dizem que “toda mulher sonha em ser mãe” parece ser um grande absurdo. Não ser mãe ainda significa transgredir os códigos de gênero e, portanto, lidar com os olhares tortos da sociedade.

Uma mulher que opta por não ser mãe mobiliza especulações e pressões de todos os tipos. Grupos reúnem-se para conjecturar os motivos, outros asseguram do arrependimento que virá depois, tem também os que tentam dissuadi-la: Você tem certeza? Mas é a melhor coisa do mundo! Sem esquecer dos que irão julgá-la egoísta, insensível, incapaz de doar amor. Ah, não posso continuar sem recordar a célebre pergunta: Mas você não vai dar um filho para o seu marido? Não tem medo que ele procure outra?

Para as mulheres que desejam ter filhos, o dilema muitas vezes é: quando? As mulheres enfrentam a questão da premência da idade (fator biológico) e sua vontade/necessidade de investir nos estudos e na carreira, adiando a gravidez. O “relógio biológico” insiste em andar mais rápido do que muitas gostariam e a gravidez em idade mais avançada continua a ser mais problemática em termos médicos, mas especialmente em termos sociais. À questão da fertilidade soma-se o estigma de ser mãe mais velha: mães com “menos energia”, “mais cansadas” e que “parecem avós”, para mencionar só alguns dos mais batidos argumentos sobre o tema. A pressão social ou familiar para que engravidem torna esse adiamento um tormento na vida de muitas mulheres.

Entre as que são mães, a vida real se impõe de modo bem diferente da idílica imagem vendida sobre a maternidade. A começar pela gestação, ao nascimento circundado de uma desmesurada violência que, segundo dados de 2010 da Fundação Perseu Abramo, atinge uma em cada quatro mulheres ao parir. Queixas de assédio sexual durante o pré-natal também não são incomuns. É com as mulheres negras que a incidência da violência obstétrica é mais frequente, indo de gritos a procedimentos não autorizados ou informados, afora as cesarianas desnecessárias.

Passou por tudo isso e pariu? Agora seu corpo tem que voltar ao “normal” o quanto antes, ou você poderá ser considerada uma glutona, preguiçosa e incompetente. A maternidade de carne e osso é bem diferente daquela romanceada, não é um mar de rosas. São inúmeros os depoimentos sobre solidão, exaustão e sobrecarga de trabalho, para citar apenas alguns. Muitas mulheres ficam com sua saúde mental abalada e, lamentavelmente, muito menos recebem apoio do que são crucificadas.

Todos sabem a melhor maneira de criar e educar os seus filhos e filhas, menos elas. Cobradas e julgadas em demasia, são diuturnamente criticadas por condutas que, em realizadas pelos homens, não geram reprovação alguma. São nelas que recaem todas as exigências e a elas é atribuída toda a responsabilidade pelo que acontece aos filhos. Quando há um homem que cumpre com suas obrigações de pai, uma inacreditável comoção social é gerada.

Troca fralda? Que fofo! Leva ao médico? Nossa, que homem! Prepara o jantar da criança? Uau, que sorte você tem! Nesses momentos percebemos o quanto a sociedade permanece presa à retrógrada compreensão de que tais atividades são “função da mulher”. Romanceiam esse homem, atribuem-lhe características de um santo, enquanto uma mulher em mesma situação é vista, na melhor das hipóteses, como fazendo apenas a sua obrigação. Não à toa convivemos com a categoria de “homens que ajudam suas companheiras”, como se a responsabilidade fosse delas e a eles coubesse a generosidade de ajudar quando possível.

Para ilustrar esse cenário de desigualdade, os últimos dados do IBGE revelaram que a dedicação média diária das mulheres brasileiras às tarefas domésticas e às crianças é 72% maior que a dos homens. Mas, se uma mulher se queixar terá grandes chances de ouvir um sonoro “quem mandou abrir as pernas?”. Sendo assim, é bom que paremos de fingir que tudo é maravilhoso, mas também problematizemos as análises que colocam tudo no bojo dos percalços inerentes à maternidade. As condições a que são submetidas as mulheres que são mães não são naturais, mas efeitos perversos do sexismo e do racismo, do individualismo e da gritante desigualdade social em que vivemos.

No mês cujo segundo domingo é dedicado a elas, como não lembrar das mães estudantes e o comum: “Por que teve? Agora te vira!”, reproduzido recentemente por um professor doutor em sociologia da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, ao expulsar de sala uma aluna com sua filha de cinco anos.

Das mães de maio e todas as mães que vivem de mãos vazias e peito dilacerado pelo assassinato de seus filhos. Muitas delas, como narrou Débora da Silva (fundadora do movimento, cujo filho foi morto no dia das mães em 2006), sofrem com câncer de ovário, útero ou mama, órgãos que geram e nutrem a vida – o que foi tirado delas. E por que não comove o choro das mães pretas?

Das mães de filhos com deficiência, que exercem sozinhas o papel do cuidado e lutam por inclusão e dignidade. E como é surreal lembrar que por muito tempo atribuiu-se o autismo, em seus variados espectros, a uma suposta falta de amor materno, culpabilizando as mães que, via de regra, já criam sozinhas os seus filhos porque os homens não “seguram a barra”.

Das mães no cárcere, impedidas do convívio com seus filhos e filhas. Que vivem gestações dentro de unidades prisionais e, após seis meses, vêm seus filhos serem levados dos seus braços. Este mês o STF concedeu um habeas corpus coletivo que transformará em prisão domiciliar a prisão preventiva (sem condenação) de presas gestantes, com filhos com até 12 anos ou com deficiência. A decisão não beneficiará presas que praticaram crimes com violência ou grave ameaça e contra seus descendentes. Ela deve ser implementada em todo o país em até 60 dias.

Das mães empregadas domésticas que não podem criar os seus filhos para criar os filhos e filhas de outras mulheres, como retratou lindamente o filme “Que horas ela volta?”, de Anna Muylaert.

Das mães que cumprem jornadas de trabalho impensáveis, que são exploradas dentro e fora de suas casas, pelos seus empregadores e por sua família. Das mães que são demitidas após a maternidade, como demonstrou uma pesquisa recente feita pela Fundação Getúlio Vargas, revelando que 50% das mães são demitidas até dois anos depois da licença maternidade.

Poderia listar uma infinidade a mais de mães, cujas vidas são muito mais complexas e menos românticas que as mamães das propagandas de margarina. Poderia falar do dia das mães nas escolas, que teimam em desprezar a diversidade dos arranjos familiares e a tristeza gerada nas crianças que, por quaisquer motivos, não possam ter suas mães em seus colégios para homenagear. Ou falar das lojas de eletrodomésticos cheias, recheadas de promoções de panelas, em perfeita harmonia com o fatídico: “Hoje você não vai para cozinha”, responsável por lotar os restaurantes.

Mas, quero finalizar dizendo que as mães são fundamentais no debate feminista e que as crianças precisam ser sempre bem-vindas nos espaços públicos. Torcer o nariz para a presença de crianças, significa negar a participação das mulheres. Nós, mulheres, mães ou não, precisamos desnaturar cada vez mais porque o “natural” nos exclui, nos explora, nos domestica, nos culpa e nos amedronta. A nossa liberdade é uma luta constante.

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