Mais de 300 famílias receberam ordem de despejo no RN durante a pandemia
Natal, RN 19 de abr 2024

Mais de 300 famílias receberam ordem de despejo no RN durante a pandemia

25 de maio de 2021
Mais de 300 famílias receberam ordem de despejo no RN durante a pandemia

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

A grave crise da pandemia de covid-19 não inibiu a Justiça de expedir ordens de despejo no Rio Grande do Norte. De acordo com o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), pelo menos 250 famílias foram atingidas por essas decisões no estado. Além disso, em fevereiro deste ano, 15 famílias em situação de rua foram expulsas pela Prefeitura de Natal do Viaduto do Baldo e 27 pessoas, do antigo INSS da Ribeira, onde se abrigavam. Outras 81 famílias sem teto estavam em ocupações alvo de desapropriação e conseguiram reverter o caso na Justiça.

Há ainda 40 famílias notificadas para desocupar suas casas na Comunidade Casqueira, nas margens da BR-110, município de Areia Branca. A moradora Janecleide Silva relata medo. “Eu estou aqui há 38 anos, desde que nasci. A gente não quer perder nossa moradia e se sente impotente porque não pode fazer nada”, contou, afirmando que os vizinhos não querem sair do lugar, mesmo que sejam indenizados com outras casas - o que, de acordo com ela, nunca foi mencionado.

“Aqui é um dos poucos lugares do mundo que é seguro, aqui está longe da violência da cidade, não tem tráfico, a gente vive tranquilo”, justificou, ao alertar que até mesmo a construção que é ponto de referência da comunidade, antigo Bar da Irene, pode ser demolida.

Segundo Jane, o primeiro aviso foi no início de 2020 e o último na terça-feira (18 de maio). Segundo ela, uma equipe do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT) foi ao povoado acompanhada pela Polícia Rodoviária Federal, “de armas em punho, coagindo as pessoas a assinarem uma notificação, dando 30 dias para sair, sem nenhuma explicação”.

Povoado em Areia Branca tem mais de 100 anos. Foto: Janecleide Silva

A dona de casa vive sozinha desde a morte da mãe no ano passado e reafirma o vínculo emocional com o lugar: “Minha família está aqui há 95 anos. Minha avó veio pra cá aos 8 anos de idade, a estrada ainda era no piçarro, e criou todos os filhos aqui. Cada filho foi construindo e vivendo. Cinco casas são de pessoas da minha família”.

Em nota, o DNIT disse que a avaliação quanto à vulnerabilidade social da comunidade atingida é realizada pelo Poder Judiciário. "No caso da Autarquia, as investigações sociais para reassentamento, normalmente, são feitas apenas em casos de construção de pistas novas.  Ainda assim, em casos de aparente vulnerabilidade, o DNIT busca envolver as Administrações Municipais e os Órgãos Estaduais, com o objetivo de promover, de forma indireta, o reassentamento, como é o caso da Comunidade Casqueira, cujas tratativas para reassentamento dos moradores estão sendo feitas com a Prefeitura Municipal de Areia Branca no âmbito da Justiça Federal", detalhou.

Os despejos acontecem à revelia do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que em fevereiro deste ano aprovou recomendação a magistrados para que avaliem com cautela o deferimento de tutelas de urgência que tenham como objetivo a desocupação coletiva de imóveis urbanos e rurais, principalmente quando envolverem pessoas em estado de vulnerabilidade social e econômica, enquanto persistir a calamidade.

Na época, um levantamento do Observatório Nacional de Despejos/Campanha Despejo Zero constatou que, durante a pandemia, teriam ocorrido 79 casos de despejos coletivos urbanos ou rurais, que resultaram no desabrigo de 9.156 famílias em todo o país. Segundo a pesquisa, quase 65 mil famílias estão ameaçadas de despejo.

Não há dados atualizados sobre pessoas sem moradia no Rio Grande do Norte. Com base no Censo de 2015, o déficit habitacional no Rio Grande do Norte é de 130 mil residências, sendo 47 mil em Natal.

De acordo com a Companhia Estadual de Habitação e Desenvolvimento Urbano (Cehab), há na Grande Natal 12 ocupações formais, sem contar as aglomerações irregulares como invasões, favelas e comunidades. As prefeituras são responsáveis por esse levantamento, acompanhamento das ocupações e pelo posterior comunicado de dados ao governo do estado.

Projeto de lei que suspende despejos e remoções durante a pandemia é aprovado na Câmara

Diante da ausência de proteção efetiva ao direito à moradia, mais de 40 organizações sociais e movimentos populares lançaram em julho de 2020 a 'Campanha Despejo Zero – Pela Vida no Campo e na Cidade'. A deputada federal Natália Bonavides (PT-RN) propôs o Projeto de Lei 1.975/20, junto com André Janones (Avante-MG) e Professora Rosa Neide (PT-MT), com a intenção é impedir despejos, desapropriações ou remoções forçadas em imóveis privados ou públicos, urbanos ou rurais, durante a pandemia de covid-19.

A proposta foi aprovada na Câmara dos Deputados no dia 18 de maio por 263 votos a 181 e segue para votação no Senado. Entre os parlamentares potiguares, João Maia (PL) e General Girão (PSL) foram contrários à proposta. Rafael Motta (PSB) e Walter Alves (MDB) não votaram; e além de Natália, Benes Leocádio (Republicanos), Beto Rosado (PP) e Carla Dickson (PROS) foram favoráveis à decisão.

Projeto quer contribuir com o cumprimento das medidas sanitárias de distanciamento social, mas principalmente garantir o direito à moradia. Foto: Cleia Viana

O PL se refere a imóveis que sirvam de moradia ou que representem área produtiva de trabalho individual ou familiar, e tem como objetivo evitar medidas que resultem em pessoas e famílias desabrigadas, contribuindo também para o cumprimento das medidas sanitárias de distanciamento social.

O projeto considera desocupação ou remoção forçada coletiva a retirada definitiva ou temporária de indivíduos e famílias de casas ou terras que elas ocupam sem a garantia de outro local para habitação isento de nova ameaça de remoção.

A nova habitação oferecida deve ter ainda serviços básicos de comunicação, energia elétrica, água potável, saneamento, coleta de lixo, estar em área que não seja de risco e permitir acesso a meios habituais de subsistência, como o trabalho na terra ou outras fontes de renda e trabalho.

A intenção é suspender os atos praticados desde 20 de março de 2020, exceto aqueles já concluídos. Para ocupações, a regra atinge as ocorridas antes de 31 de março de 2021 e não alcança as ações de desocupação já concluídas na data da publicação da lei.

Se aprovada, a norma também vai proibir a concessão de liminar de desocupação até 31 de dezembro de 2021.

A regra vale ainda para inquilinos com atraso de aluguel, fim do prazo de desocupação pactuado, demissão do locatário em contrato vinculado ao emprego ou permanência de sublocatário no imóvel. Entretanto, o benefício será concedido apenas a quem demonstrar mudança de situação econômico-financeira em razão de medidas de enfrentamento à pandemia a tal ponto que tenha resultado na incapacidade de pagamento do aluguel e demais encargos sem prejuízo da subsistência familiar.

A proibição será aplicada somente a contratos cujo valor mensal de aluguel seja de até R$ 600 para imóveis residenciais e de até R$ 1,2 mil para imóveis não residenciais.

Hilder Andrade é dirigente do MST no RN

Também será possível desistir do contrato sem multas ou aviso prévio se forem frustradas as tentativas de acordo, como desconto, suspensão ou adiamento de pagamento de aluguel entre locador e locatário.

O dirigente do MST RN Hilder Andrade acredita que a aprovação da lei será importante nesse momento em que são “crescentes as tentativas de reintegração e despejos violentos”.

“Acreditamos que podemos ter um mínimo de dignidade nesse momento difícil da pandemia; o direito a ter um teto, um chão para trabalhar e produzir alimentos. Essas famílias não podem ser tratadas como marginais, vândalos e até mesmo como animais. Essa é a forma que o governo federal, o poder Judiciário em sua maioria e os latifundiários tratam as pessoas”, disse Hilder Andrade, traduzindo os atos cometidos amparados pela lei.

MST tem mais de 250 famílias atingidas por medidas judiciais

No Rio Grande do Norte, o primeiro acampamento do MST dissolvido foi o Pequena Dandara, na BR-406, Km 163, na comunidade de Maçaranduba, em Ceará-Mirim. Setenta famílias deixaram o lugar localizado na região metropolitana de Natal em janeiro deste ano.

De acordo com o dirigente estadual e da frente de massa, Aciole Batista, 10 famílias ainda permanecem em fazenda próxima do acampamento, em espaço cedido pelo proprietário.

“No caso de Dandara houve pressão de quem comprou a fazenda atrás do acampamento para construir casas. Ou seja, o setor imobiliário pressionou o DNIT. A gente recebeu de 2012 pra cá várias ameaças e ofícios, mas se reunia e dava um tempo. Agora teve esse desfecho, sem recursos para apresentar”, explicou.

Outras duas comunidades também têm decisões desfavoráveis aos sem-terra, dos acampamentos Tieta, em João Câmara, e Santa Rita, em Santa Cruz. Aciole contou que as barracas são montadas geralmente margeando rodovias federais e estaduais, em áreas do DNIT e do Departamento Estadual de Estradas e Rodagens (DER), portanto, habituais autores das ações que pedem a retirada das pessoas.

O MST conta com 48 assentamentos no RN e estima cerca de 4 mil famílias, entre acampamentos rurais e comunas urbanas, originados de famílias que em algum momento já sofreram ação de despejo e foram, a partir de então, organizadas pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST).

Pessoas em situação de rua foram removidas com violência

Sem aviso prévio, a Prefeitura de Natal expulsou pessoas em situação de rua do Viaduto do Baldo no dia 11 de fevereiro. A Guarda Municipal foi enviada ao local e os barracos que estavam lá desde 2018 foram derrubados com truculência. Um cadeirante contou que acordou sendo puxado pela gola da camisa no barraco de papelão improvisado onde morava, enquanto um fiscal da Prefeitura jogava a cadeira de rodas em cima da caçamba de um caminhão.

"Me trataram como se eu fosse um negócio velho, como se fosse lixo", desabafou João Maria à reportagem da Agência Saiba Mais, com um sentimento que dialoga com o significado da palavra "despejo". Além da definição jurídica de desocupar imóvel, o dicionário de língua portuguesa Michaelis apresenta a palavra também como “ato de tirar aquilo que atrapalha, dificulta” e “restos de refugos de toda espécie; imundície, lixo, sujeira”.

Moradores despejados ficaram em calçada, alguns sem ter para onde ir. Foto: Rafael Duarte

O Governo do RN, por meio do programa Chega Junto, garantiu aluguel social durante cinco meses para 15 famílias que viviam no local, mas os beneficiados afirmam que, apesar de morarem em casas alugadas, precisam voltar para o local para receber alimentos doados e entregues naquela região. A maioria dos que trabalham atuam com reciclagem de lixo.

Outra dificuldade encontrada foi alugar o imóvel por apenas cinco meses. Os contratos geralmente exigem um tempo maior. As pessoas se dividiram entre conjunto Brasil Novo, na Zona Norte, Paço da Pátria e na Cidade Alta, bairros da Zona Leste.

No dia 1º de abril foram removidas 27 pessoas que ocupavam a marquise da antiga sede do INSS no bairro Ribeira. O prédio foi cedido à Prefeitura pela União e deve ser utilizado pela Secretaria Municipal de Saúde (SMS).

A Secretaria Municipal de Trabalho e Assistência Social (Semtas) informou que as famílias foram incluídas no Cadastro Único, recebem aluguel social do Governo do estado e benefícios eventuais da Prefeitura, como cestas básicas.

Ocupações urbanas vivem sob constante ameaça

Duas ocupações do Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas (MLB) sofreram ações de despejo, mas conseguiram reverter na Justiça.

No dia 20 de novembro de 2020, a Justiça Federal determinou a remoção das 65 famílias da Ocupação Emannuel Bezerra do prédio ocupado desde o dia 30 de outubro. O funcinou a faculdade de Direito da UFRN e fica na Ribeira. O prazo era de 24 horas e que a Defesa Civil do Estado realizasse uma vistoria na estrutura do local. A decisão autorizava, inclusive, o uso de força policial.

A decisão de remover as famílias foi novamente adiada no dia 25 por mais 72 horas a pedido do Governo do Estado, com a condição de apresentação e apreciação judicial de um relatório de vistoria da Defesa Civil Estadual.

Mas, em 3 de dezembro, o Tribunal Regional Federal da 5ª Região decidiu que a Defesa Civil do RN não tem obrigação de realizar a vistoria e efetivar a reintegração do imóvel da antiga Faculdade de Direito da UFRN.

“A gente não conseguiu reverter para permanecer no prédio, porque tinha vários fatores, mas conseguimos fazer com que a Prefeitura nos realocasse. A Prefeitura alugou um galpão na Ribeira”, contou o coordenador estadual do MLB, Marcos Antônio, atualizando que hoje a ocupação conta com 53 famílias.

“A luta é assim, uns vem, outros vão, voltam. As pessoas sabem que não é fácil. O que leva a morar em uma ocupação é a falta de condições de pagar aluguel. Às vezes as pessoas moram por anos e anos nas ocupações e quando consegue um emprego de carteira assinada, independente do projeto sai ou voltam pra casa dos parentes, porque passam a ter como ajudar”, relatou.

Atualmente, Ocupação Emannuel Bezerra conta comcom 53 famílias. Foto: cedida.

As 16 famílias remanescentes da Ocupação Pedro Melo também ficaram ameaçadas, mesmo às vésperas de irem para apartamentos do condomínio Village de Prata, que fica no bairro Planalto, Zona Oeste.

Em 19 de abril, o grupo amanheceu com equipes da Caern e da Guarda Municipal prontos para cortar a água do prédio onde se abrigavam, também na Ribeira.

No dia 5 de maio, eles foram surpreendidos por mais um pedido de reintegração de posse feito pela Prefeitura de Natal. A visita do oficial de justiça descumpria decisão da própria Justiça, que em 2019 concedeu o direito das famílias de permanecer no prédio onde funcionou o Albergue Municipal José Augusto da Costa, até serem encaminhadas para moradia permanente.

Até mesmo na entrega das chaves dos imóveis do Village, o grupo foi alvo de violência institucional. Militantes que acompanhavam as famílias beneficiadas foram impedidos de participar da cerimônia.

Famílias agredidas levaram cartazes com palavras de ordens para cobrar o atendimento de outras demandas do grupo sem-teto. Foto: cedida.

Pelo menos cinco pessoas foram feridas com balas de borracha pela Guarda Municipal de Natal, quando participavam de manifestação na solenidade que contava com o prefeito de Natal, Álvaro Dias (PSDB), e o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho (sem partido).

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.