Desde a guerra do Paraguai que o Brasil cultiva uma de suas fantasias ideológicas mais profícuas: o salvacionismo militar.
De tempos em tempos setores da sociedade brasileira, quando diante de uma situação qualquer de desordem ou de crise prolongada, se apegam a uma espécie de “utopia da farda”, uma crença quase religiosa de que a “elite das forças armadas” tem uma competência técnica acima de qualquer suspeita e estaria sempre a postos, pronta para salvar o país de seus “inimigos internos”.
O gatilho desse mito colocou a pedra de cal que faltava na aventura imperial dos Orleans e Bragança nos trópicos; levou Getúlio a renúncia no final da segunda guerra e ao suicídio em 1954; derrubou Jango com o golpe de 1964 e ajudou a eleger Bolsonaro em 2018.
Com uma ficha corrida dessas já seria mais do que suficiente, para qualquer conhecedor mediano da história do Brasil (como eu), entender que, por esses litorais, a ideia de uma “neutralidade constitucional” das forças armadas é um desses ansiolíticos ideológicos que põe as forças populares para cochilar, sempre que se acham deitadas no berço esplendido dos curtíssimos intervalos democráticos que o país de vez em quando atravessa.
Por isso não é de se espantar que diante do fracasso retumbante do governo fardado da vez, certos setores da polícia militar (criada como um braço armado dos regimes autoritários para reprimir o “inimigo interno”) atue como polícia política, aderindo a práticas milicianas já cultivadas e estimuladas pelo clã dos bolsonaro há muito tempo.
A violenta repressão policial ocorrida em Recife durante os protestos do 29 de Maio e as prisões arbitrárias de gente que se manifesta publicamente contra o presidente, dão a tônica da ação desses grupos e tendem a se repetir cada vez mais, especialmente a medida que o cenário político apontar mais claramente para uma derrota eleitoral inevitável do “mito”, em 2022.
Para Bolsonaro e sua família, perder o poder não é uma opção.
Muito antes de ser uma mera derrota eleitoral, a perda do cargo em 2022 escancara, para o presidente e seus filhos, a porta da cadeia.
Com uma quantidade já bem mapeada de crimes e responsabilidades penais aplicáveis sobre o clã, o medo de que não consigam reverter a decomposição eleitoral em um cenário democrático, faz com que a milícia bolsonarista ative o delírio.
Essa “alteração no conteúdo do pensamento” que enseja toda paranoia e megalomania e que põe, sobre a ação direta de milícias armadas, o destino do projeto de poder da família do presidente, se torna, a cada dia, um projeto de sobrevivência.
A questão é saber se esse delírio, que é ativado pelo gatilho do medo, ao se embater com a realidade do país vai ter força para arrastar o que sobrou da democracia brasileira depois de 2016 ou vai capotar, não apenas diante dos milhares de mortos dessa pandemia, mas também dos famintos, dos desempregados e de uma classe média empobrecida que vê o sonho de acensão social naufragar diante de uma bomba de combustível em um posto Ipiranga desses da vida.
É bom estarmos preparados para os dois cenários, porque, em nenhum deles, há indícios de que sairemos dessa situação sem algum derramamento de sangue. Até porque só falta a guerra para que o bolsonarismo, que já presenteou o país com a peste, a fome e a morte; complete o combo de seus objetivos escatológicos.