Meu cabelo veio da África
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Meu cabelo veio da África

6 de abril de 2018
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Como mulheres negras, um dos dilemas que nos deparamos desde muito cedo, ainda na infância e permanece ao longo de toda vida se dá com relação ao cabelo. No Brasil, o cabelo funciona como importante traço diacrítico para negros e negras, no qual de certa forma demonstra como se dão as relações raciais neste país.

O cabelo como algo ruim funciona para não aceitação do negro como ele é, acarretando em autoestima negativa sobre si mesmo, quando aprende que seu nariz, sua boca, seu cabelo, sua cor de pele, entre outros traços, são opostos ao que é belo e aceitável. Logo, supõe-se que o corpo negro deveria fazer inúmeras tentativas para se entrar no padrão estabelecido, mesmo negando-o quando o tenta, e não aceitando quando o nega. O fato de não poder ser aquilo que quer, nem tampouco aquilo que exigem, causa uma crise existencial, uma não aceitação que se repete nos discursos de muitas mulheres negras.

Isso porque, dentro do discurso proferido no movimento negro no Brasil, o cabelo funciona como signo de uma linguagem social, uma identificação racial, uma parte do corpo que revela a essência e a concepção sobre o eu de uma identidade negra, e esse traço ainda tende a ser rejeitado quando não se insere nos padrões de uma sociedade estruturada nas bases do racismo. Padrões esses que interferem no olhar individual e impõem modos de agir. Aparência pessoal e autoimagem tem um efeito tremendo atualmente em vários aspectos de nossas vidas. Nossas escolhas sobre estilos de cabelo podem significar a diferença entre aceitação e rejeição por grupos e, individualmente, isso pode ser visto no valor simbólico dado ao cabelo em diversas sociedades.

A aceitação da beleza negra se constitui no processo identitário, já que enxergar o cabelo crespo e corpo negro enquanto belos significa um resgate ou uma construção da autoestima, valorizando a própria raça que historicamente vem sendo depreciada através de um processo discriminatório que relaciona fatores biológicos – cabelo, cor de pele, sinais diacríticos de ascendência africana – com aspectos morais que inferiorizam um grupo. Tal realidade causa danos à constituição individual e social de homens e mulheres negras. A partir desse processo, as próprias vítimas passam a acreditar numa inferiorização natural, pois são social e psicologicamente convencidos a isso e passam a desenvolver estratégias para se ter um lugar socialmente mais desejável, como manipular e alterar símbolos que são vistos ideologicamente como distantes da supremacia branca. Por isso, a alteração do corpo e do cabelo do negro pode algumas vezes ter sentido de aproximação do branco como ideal e afastamento do negro.

No Brasil, a história construiu um sistema classificatório que se relaciona com as cores das pessoas; o cabelo e a cor da pele são considerados os sinais mais evidentes da diferença racial, confirmando o valor simbólico desses traços que reforçam ideologias raciais. A partir disso, “branca” e “preta” representam valores de “superioridade” ou “inferioridade”, assim como “bonito” e “feio”, “bom” ou “ruim”, dando-os conteúdos políticos e ideológicos, que são utilizados pelo racismo que divide o mundo em partes opostas.

Na infância, período que muitas meninas negras começam os processos de alisamentos capilares através da química, não é sabido que tal atitude decorre de um apagamento de traços negroides, muito menos uma tentativa de proximidade da aparência branca, através da imposição de um padrão de beleza estabelecido pela supremacia branca; mas sim, associado somente a um rito de iniciação da condição de mulher. Torna-se um problema das mulheres que não conhecem a própria textura capilar, como ele é de fato, pois não têm uma imagem formada de algo que foi alterado desde cedo, da identidade negra adulterada desde a infância. Como se essa modificação fosse capaz de invisibilizar traços que trariam o racismo para mais perto dessas crianças.

Como hooks (2000) nos mostra, é importante que o sentimento de pertença seja sempre pautado e eventos que reúnam sujeitos negras e negros auxiliam numa construção de identidade positiva e capaz de ser libertadora, além de somar forças para os enfrentamentos diários contra o racismo. Ainda assim, mesmo com os traços físicos, a dimensão subjetiva necessita de fases para se estabilizar e o contato com outras pessoas com maior conscientização positiva da negritude pode auxiliar no processo de fases anteriores.

Para auxiliar na construção de uma identidade negra positiva é uma tarefa que deve ser iniciada no seio familiar e enfatizada na educação, para que se enxergue positivamente a cultura, a estética e a história negra em si. Grupos que tratem da questão racial são benéficos no auxílio dessa tarefa, mas o trabalho deve ser constante, já que os enfrentamentos contra o racismo devem ser constantes. A compreensão, integração e reconhecimento dentro de um seio étnico/racial não são capazes de eliminar os conflitos diários vividos pelos negros na esfera da subjetividade, mas é inegável o auxílio que isso proporciona.

*Referência à música "Respeitem meus cabelos, brancos!" de Chico César, cantor, compositor, escritor e jornalista brasileiro.

Referências Bibliográficas:

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

hooks, bell. Alisando nosso cabelo. Revista Gaxeta de Cuba - Unión de escritores y artistas de Cuba. Janeiro-Fevereiro, 2005.

*bell hooks é pseudônimo de Glória Jean Watkins. Escolheu o apelido para assinar suas obras e homenagear os sobrenomes da mãe e da avó. O nome é assim mesmo, grafado em letras minúsculas.

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