Mil anos de medo
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15 de abril de 2020
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Um dos livros mais impressionantes sobre a Idade Média chama-se “O Ano Mil”, publicado em 1974 pelo historiador francês Georges Duby (1919-1996), grande estudioso do período da Idade Média. A igreja católica convencionou a Idade Média como o período que vai do nascimento de Jesus Cristo até a criação dos mercados internacionais com as viagens ultramarinas, em 1453. Muitos pesquisadores europeus se dedicaram aos estudos sobre a Idade Média, mas Georges Duby foi um verdadeiro “biógrafo” dessa época, porque reuniu erudição e simplicidade para alcançar o público leigo.

Na Idade Média o poder financeiro da igreja tornou-se avassalador. Séculos adiante muitos reis seriam impulsionados a pedir empréstimos e tocar a empresa comercial além-mar com o aval dos Papas após demoradas negociações firmados por contrato. De modo que nada escaparia a esse poder milenar: desde as longas guerras; os casamentos, divórcios, funerais e testamentos reais; a centralização dos conhecimentos científicos, o negócio da escravidão aos processos inquisitoriais.

Aliás, a Inquisição foi particularmente dura em relação às mulheres. O magistrado argentino Eugenio Raúl Zaffaroni descreve esse período como terrível para aquelas que se viam sozinhas após a morte de seus homens devido às doenças ou às guerras. Muitas mulheres precisaram arcar com o trabalho pesado, filhos, tributos, fome, estupros coletivos e que ainda eram punidas pela igreja por manipular remédios caseiros, diante da falta de médicos.

Quando algumas dessas mulheres se rebelavam, logo era decretada a sua morte moral pois criava-se o mito da “bruxa com um caldeirão” e, logo após um breve processo sem direito à defesa, essa mulher-bruxa-insurgente era imolada numa imensa fogueira ao lado de outros rebeldes em praça pública. Disto depreende-se que justiça é dura para com os rebeldes quando atuam magistrados de ocasião e religiosos de plantão.

A Idade Média foi o grande laboratório ideológico que manteve o povo enjaulado pelo medo, chicoteado pela ideia do satanás que os esperava no inferno, distante da educação formal secular, alimentados pela xenofobia em relação ao outro – os inimigos invariavelmente eram os de pele escura. Europeus medianos mal conheciam os direitos diante de tantos deveres. Quanto maior o período de guerras, mais deveres em forma de tributos. No ano mil somente os monges eram instruídos e dedicavam-se inteiramente ao conhecimento. Enquanto homens e mulheres árabes medianos já sabiam ler, escrever e fazer contas matemáticas simples, europeus na mesma condição ainda eram analfabetos. Segundo a lei corânica, as muçulmanas já tinham o expresso de pedir o divórcio.

A Idade Média é extensa, muito diversa em suas fases, mas durante muitas décadas as pessoas viveram mais tempo dentro de suas moradias do que migrando para outras cidades, pois havia um período em que a terra ficava infértil após ser deteriorada pelos ciclos de plantação. Nos grandes ciclos de fome houve canibalismo. As pessoas viveram longas décadas em quarentena porque o inverno às vezes era muito rígido, os pobres adoeciam e os enfermos eram obrigados a permanecer enclausuradas até se curarem ou morrerem.

Por isso a quarentena era imposta como medida profilática: para evitar que a mão de obra se contaminasse em larga escala, bem como para que não houvesse muitos cadáveres expostos, o que também gerava novas doenças. Ademais, as pessoas também costumavam se trancar nas suas habitações ao longo de períodos intermitente de guerra para sobreviver aos bandidos, aos massacres e, no caso das mulheres ao estupro coletivo.

Segundo Georges Duby, o ano mil foi um dos piores da Idade Média por causa de um aspecto particular: o medo do fim do mundo. Invariavelmente cada povo tem o seu próprio sistema de crenças que conta com uma série de lendas sobre o princípio, o meio e o fim dos tempos. Não que esses grupos sejam primitivos, afinal a ciência contemporânea também possui suas teorias sobre a criação do universo, a origem dos buracos negros e da extinção da vida em algumas galáxias.

Porém, no ano mil a igreja lançou mão desse método terrorista através das escrituras sagradas contidas no Livro da Revelação, escrito pelo apóstolo São João, o Evangelista (nascido por volta de 15 a 103 d. C). Assim, o ano mil pode ser visto como o ano da imposição das teorias milenaristas católicas, que conta com diversos elementos utilizados como verdadeira propaganda de guerra para impulsionar a união dos reinos católicos – desunidos após a queda do Império Romano, que coincide com o início da Idade Média – cuja finalidade seria a de unir os reis para a guerra europeia da “reconquista”, expulsar os infiéis (muçulmanos) e esperar a volta de Jesus.

O livro de Georges Duby se baseia em muitos relatos desde aqueles encontrados nos arquivos oficiais, decisões judiciais, literatura histórica, obras literárias, poemas e cartas eclesiásticas que explicam como as pessoas foram levadas a acreditar que “satanás estava solto na Terra” e que o mundo iria acabar. Os conhecimentos científicos foram deturpados pela igreja, que usou de certos subterfúgios como alegar à época que um forte tremor de terra e a passagem de um cometa em 1014 eram os sinais dos tempos apocalípticos em que a Terra seria destruída.

“O Ano Mil” demonstra como as pessoas estavam psicologicamente atormentadas. Até mesmo os monges que se desviavam da igreja relatam serem perseguidos em sonho por satanás; aquelas que conseguiam escapar da morte pela fogueira assim mesmo passariam o resto da vida abandonadas; há relatos de culpas, excomunhões, penitências e expiações terríveis; provavelmente o que hoje chamamos de depressão teria sido a causa de tantas pessoas encontradas enforcadas. Enfim, Duby também descobriu que as pessoas lutavam silenciosamente contra tudo isso através da arte, principalmente da música, onde podiam cantar a plenos pulmões que os monges de santos não tinham nada.

Meses antes de morrer, Georges Duby concluíra o seu último livro intitulado “Ano 1000, ano 2000” sobre os antigos medos na chegada do novo milênio: o medo da miséria, o medo do estrangeiro, o medo das epidemias, o medo da violência e o medo do além. Porém, agora o mundo ocidental não vive mais na Idade Média em que adultos europeus mal chegavam aos cinquenta anos; a Europa deixou de ser o centro do imaginário coletivo; e a igreja católica não queima cientistas que defendem a ida à lua.

Em seus últimos dias, Georges Duby traça uma comparação entre os medos depois de mil anos e constata que: a) no ano mil o medo da miséria era normal, mas havia mais solidariedade do que agora, então ninguém conhecia a solidão na miséria; b) no ano mil os europeus tinham muito medo dos estrangeiros (pagãos, judeus, muçulmanos) e dos inimigos selvagens (vikings, húngaros) disto resultaram suas guerras mais demoradas; c) o medo das epidemias foi constante no ano mil, inclusive o aumento da xenofobia (a peste também foi chamada de “peste asiática”), assim como acontece agora com a COVID-19 (chamado de “vírus chinês”); d) no ano mil, o medo da violência motivava a brutalidade de punições terríveis (torturas, lacerações, empalamentos) cometidos em locais públicos, para que as multidões se sentissem tranquilas pela ação da justiça humana; e) no ano mil o medo da morte era amenizado pela expectativa de uma vida no além, nesse aspecto a perda do sentimento de religação com a espiritualidade faz com que as sociedades atuais vivam a necessidade de um presente eterno, em que a juventude é mais um produto a ser consumido, que a mísera ideia de morte hoje seja uma experiência mais individualista, da qual as pessoas se esforçam para escapar.

* Gilmara Benevides é Doutoranda em Direito, historiadora e pesquisadora dos Direitos Culturais.

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