“Minha Rosa”
Natal, RN 25 de abr 2024

"Minha Rosa"

26 de agosto de 2018

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Seu nome Francisco Matias da Silva, mas todo mundo o conhecia no mundo do futebol por Ticão. Zagueirão de pouco mais de 1.70m de altura, musculoso, cara de mau, cabelão arrepiado que ele não fazia questão de arrumar, pouco ligava para isso, e se tinha cara de mau não era por acaso. Era cruel mesmo dentro de campo. Não alisava perna de atacante. Era de um vigor físico fora do comum. Nos treinos, sempre era cabeça na preparação física e só saía de campo por último.

Sua chuteira, Olímpica, lembro bem da marca, tinha uns travejados de plástico (hoje proibidos) pontudos e grandes. Menino, quando pegava na canela de um infeliz rasgava meião, atadura e perna. Seu ritual para entrar em campo, sempre repetido, se armava da chuteira, ataduras enroladas com cuidado, uma tornozeleira por cima e ainda uma caneleira dura, também de plástico. Não abria mão da massagem, ficava brilhando, e, para arrematar, enchia a mão da pomada Bengué e passava no peito e até no rosto. Estava pronto. Dizem que, quando se enfezava de verdade com um atacante, pedia ao massagista, mais Bengué a passava nos olhos dos adversários. Nunca vi, mas diziam.

Na sua pouca leitura, mal sabia assinar o nome, tinha uma sabedoria fora do comum. Só assim, treinando muito, ele poderia compensar a falta de atributos dos grandes zagueiros. Não negava a ninguém: "não sei sair jogando bonito, dou bombão mesmo, e se vier fazer gracinha na minha área leva bicuda", afirmava. Os atacantes, todos, sem exceção, na sua época, temiam seu jeitão. Os que não temiam respeitavam, e nenhum fazia graça com ele.

Ticão esquecido, figura folclórica, mas esquecido. Acho que só foi lembrado nos últimos dias, e mesmo assim muito pouco, porque é avô do Matheus Matias, centroavante craque de bola que saiu do ABC para o Corinthians.

Homenagens, não lembro dele ter recebido, nem ele. Passou muitos anos no Alecrim, os torcedores mais conscientes ainda recordam do "xerifão". Jogador da terra, vindo de bairro humilde, sem amizades na imprensa, não falante, não simpático (não fazia questão disso), vestiu a camisa do ABC também.

Eu joguei com Ticão. "Minha Rosa". Passei a chamá-lo assim, porque era dessa forma que ele se dirigia aos colegas. Quase sempre para pedir um cigarro. Ninguém escapava desse "golpe" engraçado. E Nilson Beckembauer, nosso saudoso volante e amigo querido Nilson Mário, já me avisara sobre o cigarro. "Galêgo, te prepara, ele vai levar teu cigarro", dizia sorrindo. Depois do treino, tomado banho, carteira de Free no bolso (fumava muito na época), lá vem ele. Olha pra mim, "Minha Rosa, dê um cigarrinho pro seu amigo, tô doido pra fumar". Estendo o maço. Ele pega um, depois estirou a mão como se fosse colocar novamente a carteira no meu bolso, parou, como se tivesse pensando: "Minha Rosa, você é um meninão novo, bonito, cheio de namorada, cheio de dinheiro, deixe eu ficar com a carteira, seu amigo aqui tá lisinho, lá na frente você compra outra..." e guardou.

"Minha Rosa" era assim. As histórias que contavam dele, algumas não presenciei, como a da "peixeira". Os mais antigos narraram que, certa vez, salários do Alecrim atrasados quase três meses (o que não era raro), os dirigentes se escondiam de Ticão. Tinham medo mesmo. Num sábado, depois do recreativo, a boa nova: ia sair vale para todo mundo. A fila de espera, os nomes sendo chamados, o primeiro foi Ticão. Ele, com um embrulho comprido debaixo do braço, botou a cabeça na porta e avisou: "vou ficar por último". Dizem que lá dentro na sala, os dirigentes reunidos, o clima já ficou tenso.
E "Minha Rosa" não tirava o embrulho debaixo do braço. Brincava com um, com outro, falava que estava sem nada em casa, contava causos e ia esperando. Os mais curiosos perguntavam o que era, ele nada. Todos receberam seus vales magros e foram saindo, reclamando, sem exceção. E Ticão com o embrulho debaixo do braço. Saiu o último antes dele. Entra o zagueiro. Joga o pacote sobre a mesa (contaram depois) e o papel se abriu mostrando uma faca peixeira de, no mínimo, doze polegadas, a peça era grande. Ele, de cara fechada, de poucos amigos, fixa o olho no tesoureiro e fala: "vou logo dizendo pro sinhor que não quero vale não, só aceito receber os dois meses que está dentro...", foi dizendo isso e colocando a mão em cima da "lambedeira".

Dizem que os homens se entreolharam, o diretor mandou fazer a conta de quanto o total dos dois meses de salários e assim foi feito. Ele, abriu o sorrisão menino, apertou a mão dos três que estavam na sala e saiu, parou na porta, voltou-se e disse: "amanhã, nem meu pai, se descer do céu, faz gol no meu verdinho...se entrar na minha área leva bicuda", e foi embora satisfeito. Lá dentro, os dirigentes enxugaram o suor do rosto.

Essa outra história, fico até sem jeito de contar, mas acho que vale. Bem jovem na época, começando a carreira, Ticão chega num bordel, coisa comum naquela época, junto com seus colegas de clube e de copo. Se engraça de uma morenona e combina para ir para o quarto, para os "finalmente". A história, foi ele mesmo que contou, disseram. Estava lá suando, subindo e descendo, resfolegando, agarrando, puxando, gostando, quando subiu o rosto para dar um beijo na parceira, um choque danado: a moça, agarrada com a revista Contigo, vendo fotos dos galãs das novelas e da música, parecia nem dar fé do esforço do nosso herói. Ele, enfurecido, arrancou a revista das mãos dela e exclamou dando com mesma publicação nas costas da coitada: "presta atenção no selviço, nêga sem vergonha". Dizem que o tempo fechou no cabaré e ele foi embora sem dar um tostão à sujeita.

Eu, já no Alecrim, também tenho uma história com "Minha Rosa". Voltei naquele ano de João Pessoa, briguei aqui e me emprestaram, mas não me pagaram lá no Belo da Paraíba e vim embora, até já contei essa história. O jogo de minha reestreia: Alecrim x Potiguar. Não sei por que motivo, de repente, um grupo de torcedores começou pedir ao treinador para me tirar. Que recepção no meu retorno (ainda hoje é assim, quando o time não vai bem, os da casa pagam o pato).

Depois, num lance legal, marquei um gol. 1 a 0. Fim do primeiro tempo. O menino da rádio veio me entrevistar, talvez os mesmos torcedores que vaiavam e pediam para o técnico a minha saída, me aplaudiam. Fiquei irritado, estava quase fora de mim, e fiz um gesto faltando com o respeito ao grupo, mas, claro, atingi a todos que estavam na arquibancada que ficava do lado esquerdo das cabines de rádio. O tempo fechou. Meu relacionamento com a torcida azedou de vez e muito pediram para que eu fosse dispensado. Como sempre, "Seu Bastos" me segurou.

Semana de treinos para enfrentar o ABC. No campo de Macaíba. Muitos torcedores presentes, alguns me olhando feio. Eu, irritado, errando muito e reclamando dos companheiros, um de meus piores defeitos quando jogador. Lá para tantas, Ticão "Minha Rosa" dá um bombão na minha direção. Não alcanço, e tome reclamação com ele. O meu zagueirão, que sempre me tratava bem, levanta a voz, me ameaça: "comigo não, se vier reclamar eu faço você calar a boca!", quase gritando. Eu, cego, maluco, quem jogou comigo sabe que é verdade, rebati na hora: "venha calar minha boca, venha, você pode ser Ticão, o caralho, mas não tenho medo de você...", menino, aquele brutamontes furioso caminhando na minha direção, eu pensei: "agora eu me lasco", mas, teimoso que só uma mula, fiquei parado, esperando, o treino parou...na verdade, o treino terminou. Ele veio vindo, veio vindo e quando chegou perto, rosto com rosto, me pegou pelo meio (eu pesava 59 quilos e tinha menos de um 1.70m de altura) me sacudiu uma duas vezes como se eu fosse um saco de feijão, rindo bem alto e dizendo: "deixa de ser brabo galego danado, deixa de ser brabo..." e foi caindo na risada, me abraçando e assim fomos para o vestiário...Nunca me esqueci. Ali, senti que, apesar de tudo, ele estava do meu lado e entendia o que eu estava passando.

Ticão. Quantas boas lembranças de meu zagueiro. Dia desses, seu filho me mandou, via mensager, uma foto dele, ao lado de um netinho ou bisneto, não sei.

Saudades de "Minha Rosa", bruto, de coração bom, honesto, trabalhador e que, dentro de campo, morria pelo seu time, pelos seus companheiros.

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