Na minha época
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Na minha época

25 de maio de 2018
Na minha época

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Não sei quando foi o exato momento. Na verdade, nem sei se houve um momento específico, ou se a coisa foi se arrastando até chegar neste ponto da história em que deixei de ser jovem. Larguei a febre juvenil, aquela ânsia de viver tudo em doses abundantes e até mesmo aquele medo de ser engolida pelo tempo e nada viver. Agora tenho medo dos preços do mercado, de não dormir o suficiente, de pagar a academia e não conseguir ir por falta de, veja só, tempo. Não me dei conta de quando ele passou, mas hoje cismo em tentar segurar o tempo.

Tolice. As crianças já me chamam de tia, meus dotes para a costura são realmente bons, planejo as compras da semana e estou cozinhando cada vez melhor. Além disso, fico cada vez mais tempo em casa. Todo fim de mês, motivada principalmente pela baixa financeira, adoto a seguinte técnica: só saio se receber convite. Sou especialista em driblar problemas financeiros. Aliás, o pobre só é pobre pelas circunstâncias mesmo, porque instinto de sobrevivência sobra por aqui.

Ah, mas eu já sei o que eu não quero. Deus me livre, me guarde e me proteja de ser um adulto chato, ceifador de vícios alheios. Sabe aquele papo: “Trabalhe enquanto eles dormem”? Comigo não cola. Até porque se você trabalhar enquanto eles dormem, inevitavelmente você vai dormir enquanto eles trabalham. Perdão pela lógica barata. Mas é só pra frisar que o mundo precisa dos desajustados, dessa gente que fecha bar num dia e bate ponto de manhã cedo no outro. Perdão pela filosofia barata.

E por falar em barata, elas têm sido um problema constante na minha vida. Quando chego tarde e acendo a luz da sala, ouço logo o arrastado no chão. Duas baratas gordas buscando esconderijo embaixo dos móveis ou num canto de parede qualquer. Epa, acho que sou intrusa aqui. Esses dias matei uma barata com água fervente. Que fique bem claro, sem querer. E quando se é um adulto confuso, a morte de uma barata é um estalo para crises maiores. Acho que não estou sabendo lidar com isso. Estou ficando velha e sentimental.

Também estou chorando mais. Meio saudosista é bem verdade. Já falo a icônica frase “Na minha época”. Na minha época a gente matava aula pra ficar paquerando no MSN em alguma Lan House perto do Colégio. Um real a hora. Confesso que já nem sei se existe paquera hoje em dia. Quanto ao real, esse já se foi há tempos. O jovem é muito rápido. É tudo ali, no celular. Criaram essa imensidão de aplicativos de namoro, esse caminhão carregado de rede social, mas o jovem investe principalmente nos joguinhos de indiferença. Aí depois vai pro facebook fazer textão sobre a frieza dos relacionamentos modernos.

Valentina, 20 anos, lança indiretas para o Enzo. “Se der ame, se derrame”. Pois o jovem é meio bobo. Mas bobos somos todos. Pelo menos em algum momento da vida, ainda que adulta. Talvez se tornar adulto seja ter cada vez mais medo de ser bobo. Desviar de tudo que não paga boleto, de tudo que deixa a louça suja. Viver nos intervalos entre as compras da semana e a reunião com o chefe. Quem dera a vida fosse só a hora do recreio, a hora da aula “morrida”, quando, ironicamente, a vida é mais vivida.

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