Na pelada com Romário
Natal, RN 29 de mar 2024

Na pelada com Romário

6 de maio de 2018
Na pelada com Romário

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Você já pensou em jogar ao lado do Romário?

Corria o ano da graça de 2001. Lá estava eu em pleno fechamento de edição de segunda-feira do Diário de Natal, em meio às notícias do dia a dia do esporte, o corre-corre de sempre.

O telefone toca. O amigo, delegado Sérgio Leocádio, companheiro de bola, me chama pra jogar com o Baixinho, que estava passando uns dias em Natal e pediu para ele organizar uma pelada.

Nem precisa dizer que, apesar dos atropelos, topei na hora.  Era uma chance única de matéria especialíssima, além de tudo que representava o craque que ainda perseguia seu “gol mil”, que só viria a marcar em 2007.

E corre daqui, corre dali, levo o fotógrafo? Tô meio temeroso, claro, o “hôme” disse que não queria imprensa.

Já passa das 20h, horário para qual a pelada estava marcada. “Pô, vamos chegar atrasados, vamos perder o início da coisa, que sempre é o melhor”, penso. Reclamo.

D’luca, fotógrafo, nota meu estresse. Na verdade, a agonia é que eu, simples mortal, do Alecrim de Natal, estava prestes a “trocar passes” com um semideus.

O pior: estava sem chuteira, sem material nenhum, como seria?

Chama o motorista e partimos nas carreiras. Depois de idas e vindas, voltas e arrodeios, nervos à flor da pele, descobrimos o local.

Chegamos no parque são José, nas cercanias da cidade de Macaíba, luzes acesas, mas ninguém em campo, felizmente. Será que era ali mesmo o lugar marcado ?

Gilmar “Mendes” (nosso motoca) estaciona o carro meio escondido, sei lá se o cara chega, se aporrinha ao ver a logomarca do Diário e dá meia-volta. Como ficamos? No local, muitos carrões já estacionados.

Desce Moura, ídolo do América , que ficou responsável pelo material e, surpresa, outro convidado pra lá de especial, Souza. Ele veio lá de Graçandu, onde passa as férias, para participar do evento.

Descontração, animação, Souza me apresenta o artilheiro Roni, ex-fluminense, que agora joga com ele no Krylia Sovetov, mais atrações especiais.

Chegou o “cara”? Ainda não. Frisson e agonia. Será que ele desistiu?  O “motivo” da festa está atrasado, aliás, como sempre.  De vez em quando alguém diz que ele está chegando. “já tá em Macaíba”, mas nada de aparecer.

Lá pelas 21h entra na propriedade uma pequena carreata, um furdunço danado, gente correndo, gritaria. Chegou ele!

Desce de um Audi preto cercado de seguranças ao lado de uma louraça. É o jeito Romário de ser.

Sequer se digna a olhar na direção das várias pessoas que o aguardavam, e que se acotovelam em busca de um autógrafo, uma foto, e ele some na escuridão por trás da casa em busca do vestiário. Foi se trocar. Os muitos fãs se desesperam.

Eu e todos os boleiros mortais corremos para o campo. Mais um tempinho de espera. Todo mundo já  em campo. A espera acaba. Cercado de muitos assessores, como se fosse um Myke Tyson se dirigindo ao ringue (falta só a música), lá vem Romário.

O maior centroavante brasileiro de todos os tempos pra muita gente, inclusive pra mim. Os curiosos o cercam. Peladeiros e não peladeiros.

Impassível, imune às emoções, apelos de olhares, ele aquece só. Não encara ninguém. Cumprimentos, nem pensar.

Mesmo que ali, pertinho dele, estivesse um jogador de seu nível, de seleção, o Souza.

Sergio Leocádio forma o time. Recebo a camisa branca. Estou no mesmo time dele e de Souza, uma emoção especial. E agora?

Meu time tem nove – é campo de mini-futebol - um a mais. O “hôme” fala, todo mundo se volta: "tem nove? Tira um e vamos começar”, meio chateado, jeito de quem está acostumado às peladas e a mandar, pronto, o show se inicia.

Mas é show mesmo.

Romário flutua. Parece encantamento, mas nunca está marcado. Nem é preciso dizer que os adversários tentam.

Para Romário e Souza é só uma pelada, para todos os outros é uma final de um campeonato mundial, acontecimento especial para contar aos filhos, netos, esposa, namoradas e guardar para sempre.

Os dois gênios da bola – o 10 e o 9 -  começam a trocar figurinhas.

Tabelas que eu só poderia ver na criação de uma seleção imaginária (sem Zagallo e Parreira, claro) estavam acontecendo ali, a um metro de distância de meus olhos brilhantes.

Na primeira jogada, um garoto da defesa chega nele, quase “ pesado”, pede desculpas, ele debocha. "Tá bom, na outra você deixa eu fazer o gol”.

Mas é o time vermelho que marca. Moura coordena e faz 1 a 0. Quase ao mesmo tempo, recupero uma bola que estava na linha de fundo e volto fazendo o passe para Souza.

O craque de Itajá domina e coloca lá no cantinho, 1 a 1. Nem precisa dizer que a felicidade sou eu naquele instante. Meu ídolo (Souza) me cumprimenta.

É impressionante ver Romário de perto, no mesmo time. Ele quase não fala, só faz alguns sons pedindo a bola - “Ô”, “ vem”, quando muito um “toca” -, mas está sempre ali, absolutamente livre, à disposição para o passe, como se fosse invisível aos marcadores, recordo, ainda hoje, sempre foi assim.

E os passes saem mágicos, afinal, é Souza com a bola. “Cavadinha”, calcanhar, “sem olhar”, isso sem falar nas várias tabelas que os dois gênios protagonizam.

Quando a bola chega em Romário é como se perdesse a força, amacia, adormece, fica absolutamente sob seu comando. Sobe, desce, com maior ou menor força, dócil. Os dois, bola e Romário, Romário e bola, parecem um só corpo.

Eu, Sérgio Leocádio, Medeiros, de coadjuvantes, jogando e admirando. De vez em quando me meto ali, tentando fazer trio. Souza me acha, acha a todos. Quem estiver melhor colocado recebe.

Romário não, pelo menos no começo. Sua bola só procura Souza. Não o recrimino. Depois, aos pouquinhos, ele vai se “enturmando”, se é que posso dizer isso dele. Já troca passes comigo, com Sergio.

A democracia, integração do futebol. Por um tempinho todos iguais, incrível! E lá vai mais uma inesquecível jogada dos “monstros sagrados”: Souza arranca com a bola, pára, finta, busca, toca para Romário.

O baixinho estanca. Faz que arranca, toca de novo pra Souza que, de primeira, deixa Romário na cara do gol. O Deus da área dá uma cavadinha. É gol certo. Não.

Leandro (hoje empresário de futebol do Santa Cruz de Natal), na época, goleiro juvenil do ABC, se consagra, toca para a linha de fundo a bola colocada em seu canto alto direito com a pontinha da chuteira.

O jogo está 2 a 2. Aureliano, outra figuraça que merecia, também uma crônica,  o árbitro, finda o primeiro tempo.

Estou em perigo, corri muito, esqueço as mortes em campo, não saio de jeito nenhum. Vou ficar mais um pouco, vou voltar no segundo tempo.

A tietagem. No intervalo, o campo de jogo se enche de curiosos. Sessão de fotos. Romário, tranquilo, não se nega a posar ao lado dos admiradores. Até nos surpreende, acho que em atenção ao amigo Sérgio.

Uma, duas, três, várias fotos. Até que se afasta, rosto sereno parece querer dizer que encerrou a cota.  Vai até Luizão, ele mesmo, nosso massagista da copa de 1994 (na época, morava em Natal), do tetra. Ele tá lá, é o massagista oficial da pelada.

Romário se aproxima. Os dois conversam, Romário sorri. Toma água, volta para o centro do campo. Ele não quer perder tempo.

O problema é que a turma que ficou fora não quer sair, parecem fascinados com a figura do astro que nem sequer parece se dar conta do efeito que causa nos mortais comuns.

Ordem ao baixinho com alguns gestos, basta.  Sérgio Leocádio faz mudanças e ele já apressa. "Vamos lá”. A partida recomeça. O time tá meio com sono.

Mas aí entra Roni no time vermelho e toca fogo no jogo, ameaçando roubar a cena.  O Baixinho parece reagir a isso . De repente, como num passe de mágica, começa a chamar a responsabilidade. Fala mais, se mexe de um lado pro outro.

Por uns instantes volta a ser aquele centroavante “imarcável”.  Pega a bola, parte pra cima da defesa, dribla, dá de “arrodeio” num segundo marcador e bate forte, rasteiro. A bola passa perto. Inacreditável, vejo ele lamentar não ter feito o gol.

Eu e essa minha mania de falar muito em campo. Já tava de bronca com o Aureliano, árbitro, reclamei umas quatro vezes, até duramente.  “Vamos jogar, Edmo!”, repetia o bom apitador, evitando polemizar.

Lá pelas tantas, dei combate na saída de bola, apertei o marcador que passou a bola pra outro. Perto deste, tinha um jogador nosso. Meio de lado, não vi quem era e gritei, quase em tom de ordem: “pega, pega!”.

Quando olhei direito, adivinhem quem era? Romário. Isso. Ele só olhou pra mim, mas nada disse, ainda bem, fingi que nada falei.

Souza e Romário. Parecia, sem exagero, que jogavam juntos desde criança. Não trocaram uma palavra antes, nem durante.  Nenhum aporrinha o outro pedindo bola, mas é impressionante como se acham, tabelam, infernizam a forte retranca do time de Moura.

Eles falam a linguagem universal do talento com a bola os pés. É surpreendente a variação de jogadas, invenções, transgressões, a coisa mais linda de se vê. Ninguém cansa.

A todo momento, pode ter certeza, surgia coisa nova. Espantado, o fotógrafo D’Luca , mesmo ele que nada sabe de bola, soltou o comentário perfeito: “Souza, você está uma pluma!”.

Estou nas últimas. O gás já foi faz tempo. Continuo de teimoso. Aí, vejam só, uma espécie de recompensa. Souza e Romário, pra variar, tabelam, a defesa corta, saio no encalço e recupero a bola. Toco para Souza, este para Romário e sai chute perigoso, rente à trave.

Voltando, passo pelo “hôme” e escuto: “ valeu”. Isso mesmo, ele falou sim, “valeu” mesmo, e foi comigo.  Bobo da corte, fiquei feliz.

Saio, cansado, contente que só pinto no lixo, eles continuam.  Romário recebe, limpa e, com apetite (isso já no segundo tempo), faz um gol. Seu primeiro. Ele gostou, sorri. É aplaudido.

Souza depois faria mais outro, o jogo aperta e termina 6 a 5 para o time de Moura. Nada de tietagem no final. Nem uma foto geral. Rápido, ele tira a camisa e se dirige para fora do campo.

Sai apressado. Depois, ninguém o vê mais. O “hôme” sumiu.  Lá fora, ainda se escuta o desespero de alguns por uma caneta, sinal de que ele ainda está por ali.

Mas logo vai embora. Nem deu tempo de autógrafo. Também não peguei a lembrança de “Garrafinha”, colega de redação do DN na época, nem de minha filha Mila. Tem nada não, conto como foi o jogo. Ela gosta de ouvir!

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