Não precisava
Natal, RN 24 de abr 2024

Não precisava

9 de abril de 2021
Não precisava

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Lembro, há muito, de dar de cara com a morte alheia certa vez em que voltava da escola. Passava em frente a uma casinha onde era velada uma senhora. Adentrei o olhar e vi o caixão, as mãos enrugadas e entrelaçadas, poucas pessoas em volta. Meu egoísmo infantil não deixou comover-me.

Depois fui esperar o transporte num ponto de uma avenida onde passavam cortejos rumo ao cemitério. A morte se tornou para mim uma experiência visual. Mortes violentas: multidão de carros, motos e pedestres. Morte natural de gente “natural”: público discreto. Passei a distinguir assim. O descaso infantil com a seriedade da vida me fazia ter aqueles rituais como passatempo.

Hoje em dia a morte é uma aba perdida entre o twitter e o whatsapp web. Um link qualquer, lido por alto. Uma mensagem encaminhada com frequência. Num baixar de olhos, durante as mil e quarenta e oito videochamadas diárias, compartilha-se tudo, mas sofre-se sozinho.

A morte é cabeça baixa. Coisa por fazer. Noites sem dormir. Documentos. Burocracia. Solidão. Nesses tempos tão cruéis, a morte é sobretudo aquele nó que sufoca e tarda a desmanchar na garganta. Não tinha de ser. Não precisava ser agora. Digo e poderia registrar em cartório: não precisava.

E então vamos descobrindo o que, de fato, precisa. Em choque. Numa imersão de maldades difusas, mas ainda assim, más. Um dia alguém ainda explode nesse país de tanto saber que não precisava ser agora. Não há mais tempo para descasos infantis.

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