Notas à toa sobre autoria
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Notas à toa sobre autoria

7 de outubro de 2019
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No artigo anterior, falei a respeito da tese de que editores (assim como revisores e tradutores) são uma espécie de co-autor, já que têm a habilidade de dar vida a um determinado texto, usufruindo do poder de intervir diretamente sobre ele.

Um amigo tirou onda com minha cara, afirmando que eu defendia essa opinião, mas eu mesma, como autora, não admitia que mexessem no meu texto. De fato e com efeito, confesso que sou ciumenta.

Lembro bem, por exemplo, quando, lá nos meus distantes 19 anos, comecei a publicar (e na imprensa, em Fortaleza). Havia um suplemento literário do jornal O Povo que aceitava textos dos leitores e ao qual eu submetia semanalmente um continho ordinário. Que alegria era, a cada domingo de manhã, ver que meu conto havia sido selecionado pelo editor! Que alegria era, com o namorado de então, ir à Feira dos Pássaros, apreciar um caldo de carne e ler o jornal!

Mas a lua-de-mel não durou muito. Quando vi, um dia, que o título de um conto que eu chamei “Usávamos óculos e bebíamos vinho” havia sido modificado ao ser publicado, eu, serpente de fogo que sou, nunca mais mandei outro texto para o “Jornal do Leitor”. Mandei foi seu editor pastar (e logo depois o namorado também).

Talvez aquele meu pequeno e ingênuo drama tenha a ver com uma discussão que Dominique Maingueneau faz (como Barthes, Foucault e Chartier fizeram também) acerca da questão das autorias. Em um texto traduzido por Helena Nagamine Brandão, uma das pioneiras da Análise do Discurso no Brasil, Maingueneau afirma que a noção de autor implica três dimensões: uma de fiador, isto é, o “autor-responsável” que “afiança” um texto, cuja assinatura não necessariamente coincide com o indivíduo em carne e osso que o produziu (pense-se, por exemplo, nos discursos assinados por parlamentares, mas não necessariamente (aliás, quase nunca) escritos por eles e sim por seus assessores); há também o autor efetivamente, o “autor-ator”, aquele ser no mundo responsável mais do que assinar um texto mas também por gerir atividades de escrita (rotinas e procedimentos como tomar ou não notas, por exemplo, antes de uma primeira versão) e construir uma trajetória (submeter-se a editores de suplementos literários, por exemplo); e há ainda a dimensão do Auctor, aquele tipo consagrado de indivíduo (de número mais restrito) que alça à condição de dispor de um estatuto, um tanto solene, de ter seu nome ligado a uma “obra”.

Há um livro delicioso da professora e escritora Márcia Abreu, Cultura letrada: literatura e leitura, que sugere boas reflexões sobre toda essa discussão acerca da autoria. Em um dos capítulos, ela trata sobre um curioso caso: a reportagem da Folha de S. Paulo mandou para várias grandes editoras (Objetiva, Rocco, Companhia das Letras, Record) o livro Casa Velha, de Machado de Assis, assinado como se fora escrito por um suposto autor desconhecido. Resultado: um polido “infelizmente não podemos publicar sua obra”. Sobre isso, Márcia Abreu conclui:

Faz toda diferença, portanto, saber quem é o autor, ou seja, o fato de haver uma assinatura, ainda que discreta, no verso da obra, muda tudo. A assinatura confere autoria à obra e a inscreve em uma convenção a partir da qual críticos e o público especializado olham para ela.

Talvez por isso os concursos literários proclamem em seus editais a exigência de anonimato dos autores competidores. Resta saber se de fato a cumprem. Aliás, posso estar enganada, mas creio que recentemente, aqui em Natal, houve, por ocasião de um concurso organizado pela Prefeitura, uma certa polêmica diante da coincidência entre o nome contemplado e o pseudônimo inscrito.

No cinema, há também ótimas dicas de filmes que abordam essa discussão sobre a pluralidade de aspectos da autoria. Indico rapidamente dois títulos traduzidos no Brasil como 1) “A esposa”, dirigido por Björn Runge e com roteiro de Jane Anderson, filme em que a ótima Glenn Close interpreta a esposa de um sujeito contemplado com o Prêmio Nobel de Literatura; e 2) “O Mestre dos Gênios”, que narra um pouco da relação entre o escritor Thomas Wolfe e seu editor Max Perkins, responsável também por outros nomes de peso como F. Scott Fitzgerald.

Enfim, toda essa temática das autorias vai longe e sua discussão pode se estender a outras práticas que não exclusivamente as de escrita literária. O fato é que, em paralelo à atuação do autor propriamente dito, há figuras que atuam, meio que obscura, mas fundamentalmente, na concretização de uma obra.

Diante disso, ao amigo que me fez aquela boa provocação, eu diria que, atualmente, já não me incomodaria tanto uma certa intervenção de outros (organizadores, editores, revisores, diagramadores etc.) em um texto meu. Admito sim uma possível interferência por sua condição de co-autor.

Contanto que não seja logo de cara no título, convenhamos, né...

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