Notas sobre o autoritarismo
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Notas sobre o autoritarismo

21 de março de 2021
Notas sobre o autoritarismo

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Muitos analistas, sociólogos, cientistas políticos, filósofos etc., têm constatado que as democracias liberais estão em risco, que há um declínio democrático enquanto o autoritarismo, o populismo de direita, está em ascensão. Eleições mais recentes reverteram a tendência em alguns países como nos Estados Unidos, com a eleição de Joe Biden, Argentina com Alberto Fernandez, Bolívia com Luis Arce e perspectivas de mudanças no Equador (segundo turno das eleições será realizado no dia 11 de abril). No entanto, diversos países permanecem com governos autoritários como a Hungria, Turquia, Polônia, entre outros, assim como também se verifica o crescimento eleitoral da direita e da extrema direita em eleições em países com larga tradição democrática como na Europa.

Uma questão importante a ser respondida é: vivemos mesmo o crepúsculo da democracia? Por que regimes autoritários e seus líderes contam com apoio popular ou seduzem uma parcela da população? A jornalista norte-americana Anne Applebaum tenta responder em parte no livro O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política (Editora Record, 2020). Na verdade, o título original é Twilight of democracy the seductive lure of authoritanism (Crepúsculo da democracia, a atração sedutora do autoritarismo). O livro junta memórias da autora com análises circunscrita aos países que ela viveu e conhece melhor, como Estados Unidos, Reino Unido e Polônia.

Por que o autoritarismo seduz? O que explica que uma parcela considerável de uma sociedade apóia quem defende ditadura, tortura e torturadores e alguns são como conseqüência, racistas, misóginos e homofóbicos? Identificação? Todos que apóiam? Ou entre eles, estão os enganados pela propaganda, seduzidos pelo marketing, influenciados por lideres religiosos inescrupulosos? Qual o papel das teorias da conspiração, das mídias sociais, imprensa, fake news, por exemplo, nesse processo?

Como diz Anne Applebaum, líderes despóticos não governam sozinhos, eles se apóiam nas elites (que controlam os meios de comunicação) os ajudam a se eleger, têm assessores, intelectuais, blogueiros, canais de televisão (que “vendem” sua imagem ao público), partidos políticos, líderes religiosos, setores do judiciário etc., que não apenas contribuíram para sua eleição, como ajudam a permanecer no poder. Alguns líderes, em função do seu despreparado e incompetência, perdem aliados, mas com o uso eficiente das redes sociais, mantém certa base de apoio, formando “bolhas”, com seguidores fanáticos, imunes à propaganda e informações contrárias a ele e seu governo.

Hannah Arendt ao refletir sobre o totalitarismo em sua grandiosa obra (A origem do totalitarismo) publicado em 1951, entre outros aspectos, procura compreender a adesão de grande parte da população a esses governos e se refere à personalidade autoritária, se remetendo a indivíduos solitários que se sentem pertencer ao mundo quando aderem a um movimento, afiliação a um partido que pretensamente os representam. Deixam de ser indivíduo e passam a obedecer cegamente a uma liderança carismática, por mais estúpida que seja.

Há, para ela, uma atração pelo autoritarismo entre os ressentidos e fracassados.

Entre outros aspectos analisa o que chamou de a banalidade do mal, como parte integrante desse processo. Para Hannah, a adesão ao totalitarismo não é mero fruto da perversidade ou da crueldade pessoais, mas da incapacidade de reflexão crítica que permitiria aos indivíduos a possibilidade de resistir à atomização e a adesão ao mal. Um dos antídotos seria o que ela chama de atividade autônoma do pensamento. E o grande desafio desde então é, como desenvolver isso, através da educação? Como? E hoje, com a internet, a expansão das redes sociais e sua influência, a sofisticação de técnicas de manipulação etc.?

No livro, de Anne Applebaum ela se refere à Karen Sterner que afirma existir uma propensão autoritária em cerca de 1/3 da população em qualquer país (embora não especifique como chegou a esta conclusão). O que Applabaum destaca é que o autoritarismo atrai pessoas que não conseguem tolerar a complexidade, são antipluralistas, que não suportam pessoas com ideias diferentes e são alérgicas a debates, até pela sua incapacidade de argumentar com profundidade. São pessoas, diz ela, que admiram demagogos e assim se sentem mais confortáveis em ditaduras, mesmo sabendo que estas desejam silenciar os outros à força.

Ela afirma que hoje “não é preciso organizar um movimento nas ruas para àqueles que possuem predisposição autoritária. É possível organizar em um escritório, em frente a um computador. Criar campanhas publicitárias direcionadas, organizar grupos no Whastsapp ou Telegram, inventar memes, criar vídeos, slogans, e fundamentalmente, apelar para o medo e o ressentimento.

Os autoritários precisam manter sua base de apoio sempre mobilizada e tem a capacidade de manipular os descontentamentos, canalizar a raiva e especialmente o medo, usando uma horda de instigadores nas redes sociais (que muitos chamam de milícias digitais), com teorias da conspiração, mentiras e, claro, o desprezo à democracia e suas instituições, portanto avessos à tolerância, a independência dos poderes, liberdade de impressa e expressão, etc.

Compreender a adesão e sedução do autoritarismo é muito complexo. É necessário um estudo interdisciplinar, ter uma base empírica consistente e associar interpretações filosóficas, sociológicas, psicanalistas etc. Portanto, não há uma resposta simples nem uma teoria que seja capaz de explicar ou propor uma solução universal.

No entanto, alguns estudos têm oferecido aparatos críticos, com base empírica que, mesmo em outro contexto e período, podem iluminar alguns aspectos para se compreender à sua permanência na sociedade.

Uma contribuição relevante nesse sentido é o livro de Theodor Adorno Estudos sobre a personalidade autoritária, publicado em 1950 (e só em 2019 publicado no Brasil pela editora UNESP). Com base em uma investigação empírica de caráter interdisciplinar nos Estados Unidos nos anos 1940, o autor, alemão fugido do nazismo, foi professor na Universidade de Berkeley e coordenou o grupo de Estudos sobre Opinião Pública. A pesquisa que resultou no livro teve a participação de outros professores da universidade como Daniel Levinson, Nevitt Sanford e o austríaco Else Frenkel-Vrunswik, que também assinam artigos que compõem a obra.

O objetivo dos autores era estudar a permanência do caráter fascista na sociedade, tanto que inicialmente, como afirma Virginia Helena Ferreira Costa na apresentação do livro no Brasil, ele deveria se chamar “o caráter fascista” ou “o caráter antidemocrático”, mas que terminou sendo Estudos sobre a personalidade autoritária. Para analisá-la, eles criaram um instrumento para sua mensuração, uma proposta metodológica inovadora que deram o nome de Escalas: E (Etnocentrismo), AS (Antissemitismo), PEC (Conservadorismo político-econômico) e F (Fascismo). Na edição brasileira, a escala F está detalhada no capítulo VII A mensuração de tendências implicitamente antidemocráticas. Nele descrevem como uma bateria psicométrica foi elaborada e seus resultados, com vários quesitos para mensurar as disposições à concepções autoritárias de uma personalidade potencialmente fascista.

Para eles “o novo instrumento foi denominado ‘escala F’ a fim de expressar a preocupação com as tendências pré-fascistas implícitas”. Entre outros, o convencionalismo (adesão rígida a valores convencionais), submissão autoritária (atitude submissa, acrítica a autoridades), agressão autoritária (tendência a vigiar, condenar e rejeitar quem viola o que consideram como valores tradicionais) e preocupação exagerada com a sexualidade (dos outros).

A pesquisa, entre outros aspectos, concluiu que a vulnerabilidade aos regimes (e práticas) fascistas podem ser atribuídos ao que chamaram de “síndrome fascista”, que se trata de um fenômeno sociopsicológico caracterizado pela identificação psicológica com as elites, pelo preconceito étnico e racial, obsessão com a sexualidade e agressividade reprimida. Identificaram isso em muitos indivíduos, mesmo vivendo em sociedades democráticas, ou seja, traços de potenciais fascistas, suscetíveis à propaganda ideológica autoritária.

Também mostrou que havia tendências de enfraquecimento da autoridade paterna e de fragilização da individualidade no interior dos coletivos. Quem aderia (e adere) ao autoritarismo em suas diversas formas, seguindo líderes, abdica de pensar, e passa tão somente a obedecer e se sentir parte de um mundo do qual se considera excluído.

Como afirmam Thais Santiago Barros, Ana Torres e Cícero Roberto Pereira no artigo "Autoritarismo e adesão a sistemas de valores psicossociais" (Psico-USF, vol. 1, nº 14, p. 47-57, jan.-abr. 2009) “Para Adorno e colegas, os indivíduos que são socializados numa sociedade sob um regime político autoritário tendem a se submeter às autoridades e a se posicionar no lado político dominante. Esses indivíduos nutrem uma confiança excessiva nas autoridades e tornam-se mais predispostos ao autoritarismo por acreditarem que compartilham o poder e a fama daqueles que apóiam. Por outro lado, a internalização dessas normas exerceria a função de proteção nos momentos em que figuras de autoridade não estiverem presentes, minimizando a ansiedade. E mais, qualquer crítica feita a essas normas é vista pelo indivíduo como um ataque à própria pessoa” (p.48).

Na pesquisa que fizeram verificou-se que os valores religiosos estão relacionados com diminuição da tolerância, enquanto a adesão aos valores hedonistas está relacionada com o aumento da tolerância e com a diminuição do autoritarismo. Eles ressaltam a importância “de uma perspectiva psicossocial que leve em conta os valores contextuais como fatores importantes para a compreensão do apoio das pessoas ao autoritarismo e à democracia”.

Um aspecto importante no livro de Adorno, que serve para os nossos dias, é mostrar que o fascismo não foi apenas um episódio isolado, mas que continua presente de modo latente em parcelas da sociedade, mesmo naquelas com regimes políticos democráticos. E não se trata apenas de constatar, mas salientar a necessidade de se opor a toda forma de autoritarismo, em especial, o fascismo, resistindo, como indivíduo autônomo “ao poder cego dos coletivos”.

A pesquisa e a publicação dos seus resultados tiveram uma ampla repercussão nos meios acadêmicos, intelectuais e políticos. Virginia Helena Ferreira Costa na citada introdução se refere aos dados de uma tese de doutorado em Filosofia de Garret Norris (2005), afirmando que seus resultados influenciaram a produção de mais de dois mil estudos sobre autoritarismo entre os anos l950-1990 e que, segundo ela “ainda segue fomentando pesquisas relacionadas às mais diversas áreas na atualidade”.

Em relação ao Brasil, não são muitos os estudos. Além da sua tese de doutorado A personalidade autoritária - antropologia crítica e psicanálise (2019) em Filosofia, na USP, Virginia Helena Ferreira da Costa cita os estudos de José Leon Crochik, Teoria crítica da sociedade e estudos sobre preconceito (Revista Psicologia política. São Paulo, vol.1, 2001, n.1), de Iray Carone. A personalidade autoritária; estudos frankfurtianos sobre o fascismo (Revista sociologia em rede, vol.2, n.2, 2012), Deborah Antunes. Por um conhecimento sincero do mundo falso: teoria crítica, pesquisa social empírica e The Authoritarian Personality (Paco Editorial, 2014) e a pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública “Medo e violência e o apoio ao autoritarismo no Brasil: índice de propensão ao apoio a posições autoritárias” (2017). Pode ser citado ainda o artigo A personalidade autoritária’ hoje: por que o fascismo volta a fascinar? De Douglas Garcia Alves Júnior professor de filosofia da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), publicado em setembro de 2018 na revista Cult (https://revistacult.uol.com.br/home/a-personalidade-autoritaria-adorno/).

Em relação à pesquisa do Fórum de Segurança Pública em 2020 foi publicado o artigo Medo da violência e adesão ao autoritarismo no Brasil: proposta metodológica e resultados em 2017 na Revista Opinião Publica, vol.26 no. 1 Campinas(2020) por Renato Sérgio de Lima (diretor presidente e coordenador técnico da pesquisa do Fórum), Paulo de Martino Jannuzzi, James F. Moura Junior e Damião S. de Almeida.

Usando o estudo seminal de Adorno como referência, a Escala F (fascismo) adaptada à realidade brasileira, entre outros aspectos relevantes mostram o papel do medo da violência na adesão ao autoritarismo no Brasil: “a forte adesão às posições autoritárias medidas pela escala F adaptada à realidade brasileira está fortemente correlacionada com um fator que devemos considerar chave na determinação dos movimentos das representações sociais sobre democracia e autoritarismo no Brasil: o medo da violência, que tem sido eficazmente explorado pelos porta-vozes da extrema direita política para o reforço do pânico moral que tem tomado conta do Ocidente nos últimos anos e que, no país, é traduzido como fruto da “frouxidão” das leis penais e da “imposição” de uma agenda “globalista” e “esquerdista” de direitos humanos e sociais”.

Hannah Arendt, analisando a crise da autoridade, educação e cultura, destaca o seu papel na resistência à barbárie, como o livro Entre o passado e o futuro. Publicado em 1954 (e com várias edições posteriores), reflete sobre a autoridade (O que é Autoridade), Liberdade (O que é Liberdade?), crise na educação e na cultura (sua importância social e política), destacando a necessidade do individuo autônomo (antídoto contra a barbárie), ou seja, a capacidade de reflexão e autodeterminação dos indivíduos. O grande desafio é o que e como fazer àqueles que se opõem ao autoritarismo, ao fascismo, para defender e difundir valores democráticos em meio à países em que a barbárie avança.

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