O alfaiate do povo e o Brasil que eu queria
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O alfaiate do povo e o Brasil que eu queria

16 de março de 2021
O alfaiate do povo e o Brasil que eu queria

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* Por Plínio Nobre de Almeida Neto

Tempo de Rasgar

No ano de 1924, alguns artistas modernistas, entre eles Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade, empreenderam uma viagem ao interior de Minas Gerais que ficou conhecida como “Viagem da Descoberta do Brasil”. A intenção deles era encontrar o que havia de genuinamente brasileiro do ponto de vista artístico e cultural. Encontraram justamente no barroco mineiro, na arquitetura de suas igrejas, casarões e nas obras de Aleijadinho o que procuravam. O barroco mineiro foi alçado aí a suprassumo da identidade nacional. Aleijadinho, um filho de brancos e negros, seria a síntese perfeita que deu origem ao ser brasileiro. Há quem duvide de que Aleijadinho tenha de fato existido. Independente disso, o legado artístico atribuído a ele atrai turistas às cidades mineiras até os dias de hoje, ou ao menos costumava atrair até antes da pandemia.

Na última quinta-feira, para minha surpresa, meu amigo Danilo, também historiador, me enviou uma mensagem com a reportagem do site The Intercept contendo a matéria intitulada “PQP. Matérias Furadas na Internet: como a Lava Jato caiu numa mentira de internet e esperava prender em flagrante o ex-presidente Lula por roubar um objeto que era dele mesmo”. A matéria, feita com base em diálogos vazados, trata de uma série de trapalhadas dos membros da operação Lava Jato, ocorridas em 2016, que acreditaram, por causa de uma notícia falsa circulando na internet, que uma imagem de Cristo talhada em madeira fosse uma obra do escultor mineiro Aleijadinho roubada por Lula quando este saiu da Presidência da República. Para frustração da força-tarefa, a obra nem era de Aleijadinho, nem tinha sido roubada. Era um presente de um amigo de Lula, portanto, pertencente a seu acervo pessoal, não ao Estado brasileiro.

Comentei com meu amigo que o episódio me deixou chocado não pelas intenções pervertidas que, já sabíamos, dirigiam as operações, mas por envolver erros primários cometidos por gente tida em alta conta por parcela da sociedade. Os cérebros da Lava Jato, os doutores da lei brasileiros, não tiveram sequer a competência de fazer uma simples busca no Google. Se assim procedessem, certamente encontrariam uma matéria da revista Época, de 2011, intitulada “A real história do Cristo de Lula”, desfazendo toda a mentira. Aliás, eles até a encontraram, mas só depois de se mobilizarem para apreender parte do acervo do ex-presidente. Além disso, os diálogos vazados pelo Intercept mostraram que os mesmos senhores também desconheciam a legislação que versa sobre proteção dos acervos documentais privados dos presidentes da República.

Se não fossem os vazamentos do Intercept, eu talvez pudesse achar que os responsáveis pela operação estivessem somente a blefar e, aproveitando que a opinião pública se voltava, naquela altura, contra Lula, o PT e as esquerdas, apelavam para a estratégia do “se colar, colou” para destruir a reputação do ex-presidente. As conversas reveladas, entretanto, nos mostraram, como bem observou Danilo, que esses senhores caminharam entre a incompetência e a perversão e que, portanto, “não passaram de sepulcros caiados”, como talvez dissesse sobre eles o homem cuja imagem buscavam no cofre de um banco. Pior: tinham a pretensão de criar a narrativa de que Lula não só se beneficiou indiretamente dos esquemas de corrupção envolvendo empreiteiras e a PETROBRAS (tese que, a cada dia, tem se mostrado mais fabricada), mas furtou os próprios bens culturais do povo brasileiro, contribuindo, portanto, para a degradação financeira e cultural do país. Além disso, por se tratar do furto de uma imagem considerada sagrada por muitos, a repercussão do caso, se verdade fosse, atingiria em cheio a sensibilidade religiosa do povo pelo fato do catolicismo ser ainda a religião predominante no Brasil.

Talvez eu esteja superestimando os conhecimentos dos lavajatistas a respeito da importância do barroco mineiro. De qualquer forma, nada mais sintomático do nível cultural e do perfil de parte de nossas elites desconhecedoras do Brasil do que essa tragicomédia vazada. Como diz a canção de Aldir Blanc e Maurício Tapajós:

O Brazil não conhece o Brasil

[...]

O Brazil não merece o Brasil

O Brazil tá matando o Brasil

A questão é que, mesmo a Lava Jato sendo desmentida de dia e de noite, circula a narrativa de que Lula e o PT causaram uma crise econômica sem precedentes por causa da corrupção. Trata-se de uma clara inversão dos fatos. A crise econômica, que se iniciou com o chamado “fim do superciclo das commodities”, foi agravada pela crise política gerada pela própria Lava Jato. Crise política essa que culminou com o processo de impeachment contra Dilma e com a eleição de Bolsonaro em 2018.

Não é necessário que eu repita aqui toda a tragédia que o bolsonarismo perpetrou; da volta da fome, do desrespeito pelas minorias, do desprezo pela vida durante a pandemia. Há algo, todavia, menos grave e menos comentado que essas questões, mas que me afetou profundamente: para minha tristeza, Bolsonaro, o homem cujo símbolo é o gesto de fazer uma arma com as mãos, pôs em xeque o mito do brasileiro como povo amigável, tolerante e não-violento, confirmando a tese de que um país forjado na escravidão e por um mero acordo entre membros de uma casa real não poderia ser diferente disso que estamos vendo. Não falta quem aponte para o “esgarçamento do tecido social” na era Bolsonaro e para a figura deste como o auge do culto à violência e, portanto, bastante representativa do pensamento do brasileiro médio. A historiadora Lilia Schwarcz disse, em entrevista, que o brasileiro é um povo violento, mas que não gosta de ser visto como tal. O mito da democracia racial, por exemplo, seria apenas mais uma tentativa de apaziguar as tensões raciais existentes ao disfarçar a violência com uma falsa imagem de harmonia. A mim me dói admitir que isso tudo seja verdade, mas é. É por jogar isso na cara de todos que, como eu, gostavam de se imaginar num país diferente, que Bolsonaro é por mim ainda mais detestado.

Tempo de Costurar

Um dos meus quadros favoritos entre os dos famosos pintores brasileiros certamente é a obra A Pátria, de Pedro Bruno. Tela do início do século XX, nela, sobre um fundo com símbolos republicanos, algumas mulheres estão reunidas costurando a bandeira nacional enquanto um bebê é amamentado, outro brinca com uma estrela, outro é abraçado e, no centro da imagem, uma criança se agarra ao tecido com as cores nacionais. Não se trata de fazer, aqui, apelo ao ufanismo ou ao nacionalismo. Trata-se, sobretudo, de exaltar o ofício das costureiras, embora eu até ache que devamos, como defendeu o professor Oliver Stuenkel em matéria do El País, resgatar os símbolos nacionais do monopólio da extrema-direita.

É preciso lembrar do ofício das costureiras, porque costurar é para poucos. Rasgar, ao contrário, qualquer idiota faz. Bolsonaro é um rasgador. É de Lula o trabalho da costura. Como um anti-Bolsonaro, e suponho que esse seja um dos motivos da paixão de tantos por ele, Lula ainda é capaz de encarnar o mito do Brasil pacífico, amigável, tolerante e que resolve seus conflitos pela defesa da democracia e do diálogo, não da violência. Ele encarna o mito de um Brasil acolhedor e pronto para abraçar todo o mundo.

Talvez seu ofício seja herança de sua avó, Mãe Tili, costureira famosa e mãe de dona Lindu. Talvez o tenha aprendido com Lurdes, sua primeira esposa, que também costurava, ou com dona Marisa, a segunda esposa que costurou a primeira bandeira do partido. Uma coisa parece certa: deve ter sido herança de quem, antes e depois dele, ainda teima em costurar o tecido social que a elite e quem age em nome dela insistem em deixar esfarrapado; herança desse povo que vive a perambular e a entrançar, estendendo linhas e desenrolando carreteis sobre o território, por todos os rincões do Brasil e, nessas andanças, bordou a imagem de país ainda digna de ser aproveitada. Porque o povo brasileiro também foi feito pelos indígenas que migravam em busca da “terra sem males” e pelos negros transportados por sobre o Atlântico à força. Porque o ser brasileiro também foi forjado pelos retirantes que partiram dos sertões para o sudeste, em paus de arara, para construir as grandes metrópoles nacionais ou quando os candangos vieram de toda parte para construir a nova capital. O ser brasileiro foi feito pelos imigrantes de todos os países do mundo em busca de melhores condições de vida. O ser brasileiro, enfim, é construído hoje por aqueles que, diante do caos que se instalou em Manaus por causa da pandemia da COVID-19, cederam leitos aos amazonenses e se mobilizaram para mitigar o drama nacional. É isso que faz a identidade de um povo e é nessa gente resistente e que não se curva que precisamos confiar. Como diria Lula, “quem nasceu em Pernambuco e não morreu de fome até os cinco anos de idade, não se curva mais a nada”.

Se o país que conhecemos foi ontem inventado, isso nos dá a certeza de que poderá ser reinventado e reconstruído amanhã. A ideia de democracia racial poderá, assim, ser reaproveitada, não mais como mito a ser combatido, mas como utopia a ser alcançada. Não como uma tentativa de negar os conflitos raciais, mas como esforço para superá-los. Eis o país que eu queria: um lugar onde judeus e árabes conversam sem medo, como também disse Lula uma vez. Como na música de Marisa Monte, um vilarejo onde toda a gente cabe, da Palestina ou de Shangri-La; um país onde o Cristo não seja misturado às coisas do Estado, nem símbolo de intolerância, nem imposição de grupos fundamentalistas. E, mais que a imagem crucificada procurada pelos lavajatistas, seja o Cristo ressurreto, redentor e libertador, de braços abertos e prontos para abraçar, uma alegoria do amparo a quem aqui vem buscar abrigo.

Por fim, se Lula representa todos esses valores e pode ser a esperança de alcançar, mesmo parcialmente, o Brasil que eu queria, peço: deixem que ele faça, como fizeram os artistas modernistas do passado, uma nova viagem de descoberta do Brasil em que haja um novo “dia do reencontro do Brasil consigo mesmo” para “construir, neste rincão da América, um bastião mundial da tolerância, do pluralismo democrático e do convívio respeitoso com as diferenças”.

* Plínio Nobre de Almeida Neto, enfermeiro da Secretaria Estadual de Saúde e graduado em História pela UFRN

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