O aro era 14
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O aro era 14

16 de junho de 2018
O aro era 14

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No momento exato e preciso em que ela anunciou a grande revelação – tu sabe que eu tenho uma fossa ilíaca problemática, né? – o pneu do Chevette 77 de Romilson voou longe, pra lá da rua Manoel Dantas.

Isso tudo só porque Romeu, às 16:16 lá na oficina da Esperança, não apertou devidamente os parafusos. Desparafusado como qualquer um poderia ser, também o aro do pneu não colou e nem cantou no coração da boa sorte. Cantou no asfalto quente e deixou marca, voando longe, solto e só ...

Mas antes daquele pneu rolar, ele, Romilson, gostou dela como uma aranha gosta de sua trigésima segunda teia. Como foi mesmo que foram se encontrar? Sabe Deus e Exu desconfia. O que se sabe é que eram dois: ele sepultador e ela operadora de telemarketing.

Em outras palavras, sem muitas firulas: o coveiro e a telefonista.

Ele, o Romilson, além de preferir a cor azul, tinha vergonha de seu nobre ofício e quase nunca declarava esse traço seu, o de ganhar a vida enterrando os que já morreram. Ela, por sua vez, de nome impronunciável, tinha também lá seus “podres”: um sinal de nascença totalmente inexplicável, absoluto e acabado. Uma fossa ilíaca problemática. Ambos, em suas diferenças, se encontravam assim em suas vergonhas arbitrárias, escondendo-se um do outro.

E um era o que dá destino, e a outra, a que seria predestinada.

Romilson pensou então, certa feita: vou ter que dizer. Uma hora ela vai ter que saber que eu sou coveiro, porra! E ainda por cima gostava do sabor do coentro e torcia pelo futebol do Alecrim. E adorava um cozido de chambaril, mas também pensava seriamente em se tornar vegano um dia, quem sabe talvez flutuar.

Vou dizer que sou coveiro, sim. Vamos todos pra debaixo da terra, meu bem, ele ensaiava. Isso se acharem nosso cadáver. Ficaremos sob túmulos de granito grandioso ou de gesso ordinário que não duram nem dois anos.

Isso se acharem nosso corpo, como eu dizia... Que será do corpo?, perguntou um dia o Drummond. Enquanto isso, pagava suas contas sem mais delongas.

E ia assim estudando maneira de dizer sua condição quando um dia iam no Chevette 77 Romilson e sua namorada em busca de sabe-se lá que delírio de completude. Iam comer um chambaril lá não sei onde. E quando Romilson se sentiu forte e potente para correr todos os riscos de anunciar – eu enterro mortos o tempo todo... – ela veio e disse, sem nem mais nem menos:

- Tu sabe que eu tenho uma fossa ilíaca problemática, né?

O pneu voou longe. A rua Manoel Dantas ficou bem para trás.

Depois de todo aquele perrengue, Romilson deu por vencida a partida com ela. Que se foda que fosse um criador de fossa, para dizer de outra forma que era um coveiro. O Chevette ficaria de molho até o dia seguinte, ele despachou então ela num ônibus e foi embora, para o começo de seu alívio. Não tinha mais jeito. Ó condição de ser de ninguém! Foi então viver. Foi jogar xadrez, sinuca, porrinha. Foi jogar jogo da velha e andar por aí mastigando pitanga que não amadurecia. Azeda sempre.

Foi ser.

E só lembrava dela com abuso. Criou horror. Ah, o horror! Ela e sua fossa ilíaca problemática... Como viver com tanta compreensão? Jamais.

Ela ainda rastejou um tanto, mas logo sumiu, melodramática que não era. Quando se fez a paz, então, chegou a mazela. Porque desgraça pouca é bobagem e aqui se faz, aqui se paga.

Primeiro ele, Romilson, adquiriu chato, que pegou logo nas primeiras semanas depois do desenlace com ela. E depois foi a batida da nova moto. Os prejuízos se acumulavam. Os cabelos começaram a cair. Para acabar com a insônia que foi surgindo, foi tomar umas bombas e daí veio uma mijadeira sem fim. Estropiado cada vez mais, só então deu pela ausência dela.

Isso que chamam saudade.

Mas aí era tarde. E o Chevette 77 de aro 14 continuava encostado num canto da oficina de Romeu.

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