O Brasil, a mídia e a ONU: esse covil de comunistas!
Natal, RN 20 de abr 2024

O Brasil, a mídia e a ONU: esse covil de comunistas!

24 de agosto de 2018
O Brasil, a mídia e a ONU: esse covil de comunistas!

Ajude o Portal Saiba Mais a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

No último dia 17 de agosto, tivemos notícia da recente liminar do Comitê de Direitos Humanos da ONU, no sentido de que seja assegurado ao ex-presidente Lula o exercício de seus direitos políticos na campanha presidencial de 2018, até que todos os recursos pendentes de revisão contra sua condenação sejam apreciados. O mérito do caso submetido ao Comitê ainda não foi analisado, mas seus integrantes consideram a irreversibilidade dos efeitos da atual proibição ao ex-presidente, caso sua participação não seja assegurada.

Uma vez divulgado o teor de tal liminar, estamos assistindo a dois efeitos curiosos, mas não surpreendentes no atual cenário brasileiro: i) o silêncio da grande mídia e ii) o descredenciamento da medida ou da própria ONU quanto à sua repercussão jurídica e prestígio institucional.

Senão vejamos...

Sabemos que a mídia, como campo social, mobiliza de maneira privilegiada o processo comunicacional na sociedade contemporânea. Aqui, vamos entender o processo comunicacional como algo que é capaz de transformar as interações que se dão mediante atos discursivos, silêncios, gestos, comportamentos, olhares, posturas, ações e omissões. Desta forma, o processo comunicacional se manifesta segundo uma dimensão expressiva ou pragmática, incluindo, nesse aspecto, os silêncios e as omissões como modos de comunicar capazes de modificar essas tais interações.

Assim, a comunicação engendrada por essa grande mídia encerra um traço diferencial fundante: o seu potencial de produzir e divulgar bens simbólicos, de modo a dar visibilidade (ou não) aos discursos sociais que são nela (re)produzidos, mediante várias formas de acionamentos discursivos, sejam eles gramaticais, poéticos ou ideológicos.

Em face desse tipo de processo comunicacional, novas formas de sociabilidade se instauram, modificando noções de público e privado, de real e ficção, de tempo e de espaço. Com os novos recursos da comunicação, as experiências deixam de ser vivenciadas mediante as presenças diretas dos sujeitos para serem televivenciadas ou vividas a distância.

Assim como os outros campos sociais, o campo da mídia possui uma simbólica, uma axiologia, papéis e instituições, mas daqueles se distingue por ir além do desejo de se organizar e se tornar visível, constituindo-se como o próprio campo de visibilidade dos demais campos sociais. Nesse sentido, é através dessa promessa de visibilidade que o campo midiático adquire legitimidade e existência na sociedade. A mídia, assim, assenta-se nesse compromisso de dar visibilidade a toda sociedade, ou, melhor dizendo, no juramento à sociedade de que tornará visível todos os outros campos sociais, muito embora essa publicização nunca se realize integralmente.

Por tudo isso é que o processo de comunicação da mídia não é pura intermediação das falas dos sujeitos, pois se realiza a partir de um lugar de poder no qual são tomadas decisões (estratégicas) sobre o que será falado, bem assim o que será silenciado. Enfim, essa imprensa possui uma série de interesses e regras que acionam, face ao seu princípio de transparência, uma infinidade de tensões entre o que se vai publicar e o que se vai ocultar.

Entendido isso, podemos adicionar a esse cenário a compreensão de que os campos sociais se relacionam entre si, de modo que a força de um campo está em afetar mais fortemente os demais com sua axiologia, bem como está na relação diretamente proporcional ao número de campos aos quais impõe ou projeta seus reflexos. Nesse tal relacionamento, é possível, então, observar relações e cooperação ou conflito e, no primeiro caso, há uma composição de estratégias de mais de um campo no intento de amplificar seus efeitos institucionais. Aqui, as especificidades de cada campo cooperado cede lugar à neutralidade de um campo mediador que vai, enfim, fundamentar sua estrutura e funcionamento.

Não seria difícil logo concluir que o campo da mídia, na sua função de dar visibilidade e de agenciar os interesses (conflitantes ou não) dos demais campos, afigura-se como um campo mediador por excelência. Dada a segmentação e fragmentação sociais, próprias da modernidade, o tecido social é formado por uma diversidade de campos autônomos, de modo que a mídia se institucionalizou como campo mediador por excelência e capaz de assegurar a coesão orgânica desse todo fragmentado, com todas as suas contradições e interesses. Seria, assim, o lugar no qual poderíamos melhor observar as mais variadas tensões que constituem a dinâmica dessa sociedade fragmentada.

Só que não!

Sendo mediadora da realidade, a mídia se coloca entre o fato e o público. De tal modo, no seu ato de apreender o real e de comunicá-lo, possui um grande potencial na produção bens simbólicos, bem como constitui instituição privilegiada de mediação, exercendo, assim, inegável influência na concepção de realidade e na formação dos conceitos sociais. Não é espelho, mas sim representação do real que é produzida, pois, cheia de motivações, intencionalidades, interesses, necessidades e condicionantes.

Numa síntese apartada, alcançamos a conclusão de que a mediação nos faz conhecer o mundo. Noutras palavras, é o que nos traz a 'realidade' em recortes sucintos com aparência de totalidade, uma vez que esse mundo é “editado”, passando por vários processos que envolvem supressões, acréscimos, destaques e ocultamentos. E o que não é dito, nesse mundo das mediações, não aconteceu!

É assim que a grande mídia vem tratando a novidade da liminar concedida pelo Comitê de Direitos Humanos da ONU: algo que não existiu. Vira tabu ou é tratado como segredo e tanto um (tabu) quanto outro (segredo) serve para tornar possíveis determinadas situações, dinâmicas ou convivências. Assim, não se projetam as contradições e rupturas que o nosso sistema de justiça possui em relação ao discurso de defesa da democracia e proteção dos direitos fundamentais, mesmo tendo o Brasil feito adesão aos tratados internacionais a isso relacionados, comprometendo-se em segui-los e assumindo responsabilidades em relação a esse marco legal. Isso porque o Estado brasileiro não está disposto a cumprir essa tal determinação liminar, inserindo o segundo viés desse cenário: sendo inevitável noticiá-la (a decisão liminar), vamos descredenciá-la.

Se consultarmos qualquer manual de lógica e argumentação, veremos que o descredenciamento do interlocutor ou de uma instituição que demarca sua posição argumentativa é uma das mais típicas falácias argumentativas.

Descredenciar a fonte, em vez de se deter aos argumentos em si, vem sendo a estratégia discursiva utilizada pelas instituições nacionais, pérolas fáceis de coletar. Vejamos algumas: “Precipitada, a decisão do Comitê de Direitos Humanos da ONU se torna inexequível” (Mauricio Gotardo Gerum - Procurador Regional do Ministério Público Federal); “não tem relevância jurídica” (Torquato Jardim – Ministro da Justiça); as posições do Comitê têm "caráter de recomendação e não possuem efeito juridicamente vinculante" (Ministério das Relações Exteriores – Itamaraty) e assim por diante (vejam o que está adiante!).

Curiosa a decisão ter sido chamada de “precipitada”, quando o Comitê já vem estudando, desde julho de 2016, a denúncia apresentada pela defesa do Ex-Presidente quanto ao processo judicial que conduziu à sua condenação. O fato que levou a defesa do Ex-Presidente a encaminhar tal denúncia foi a condução coercitiva de Lula para depoimento, pela força-tarefa da Operação Lava Jato (04/03/2016), indicado como ‘abuso de poder’ e ‘parcialidade’ das instituições brasileiras[1].

Ao receber a denúncia, a ONU poderia ter recusado seu registro ou adotado um rito de urgência, a depender das condições do caso. Contudo, optou por realizar o registro (ato meramente burocrático e formal, que não revela qualquer posição sobre o mérito da questão) e adotou o rito tradicional. Nesse rito, o passo seguinte foi solicitar ao Estado brasileiro que apresentasse suas alegações a respeito do fato, submetendo-os a uma posterior apreciação dos denunciantes, aos quais cabia apresentar suas últimas informações. Apenas depois disso, o Comitê pôde examinar as condições de admissibilidade da queixa. Uma vez admitido o comunicado de violação de direitos humanos, inicia-se a análise do mérito da questão.

Durante esse período, a defesa de Lula já havia ingressado com pedido de medida cautelar perante este mesmo Comitê, com o fim de evitar sua prisão e sua permanência nela até que todos os recursos à sua condenação nas instâncias judiciais fossem exauridos. Contudo teve seu pleito denegado, em 22 de maio de 2018, dado que o Comitê não considerou que se configuravam ‘riscos e danos irreparáveis’ ao petista. Por outro lado, nesta oportunidade, o Comitê comunicou a admissibilidade da denúncia encaminhada em 2016, concedendo ao Estado brasileiro o prazo de seis meses para apresentar defesa quanto ao mérito do fato.

Nesta segunda decisão, apreciando novo pedido apresentado pela defesa do Ex-Presidente em 25 de julho de 2018, o Comitê mantém sua linha de raciocínio (não define que o Estado brasileiro deva libertar Lula), mas concede liminar para que seus direitos políticos sejam assegurados, sob pena de consequências irreparáveis para ele no pleito eleitoral de 2018.

Não sabemos em que sentido o eminente membro do Ministério Público Federal considerou a posição do Comitê como “precipitada”, mas os dois anos de tramitação e todos os cuidados já adotados pelo órgão parecem revelar o contrário.

Ademais, classificar a decisão do Comitê como “juridicamente irrelevante” ou uma "intromissão política indevida" (Ministério da Justiça), bem assim como mera “recomendação” também cumpre seu papel deslegitimador. No primeiro caso, é expressão escancarada de esnobismo e falta de postura diplomática de nosso Estado, mesmo tendo ratificado ao Pacto para os Direitos Civis e Políticos da ONU (1992)[2] e reafirmado seu compromisso perante o Comitê (agora irrelevante) em 2009, admitindo assim sua autoridade. Quando se fala em “intromissão política indevida”, acusa o próprio Comitê de parcialidade, além de desconsiderar/descredenciar qualquer critério técnico e jurídico que o órgão tenha adotado para emitir sua decisão liminar.

Quanto à obrigatoriedade da decisão (ou seu caráter de mera “recomendação”), temos a seguinte circunstância: i) a adesão ao pacto e sua chancela via legislativo nacional implica em sua incorporação ao sistema jurídico do país[3]; ii) uma vez incorporado ao marco regulatório do Brasil, o pacto possui força de lei, carregando, portanto, sua obrigatoriedade; iii) a obrigatoriedade, mesmo de leis nacionais, não evita o seu descumprimento (se assim fosse, todos nós teríamos apenas condutas lícitas o que é impensável em qualquer sociedade); iv) o descumprimento de uma lei acarreta sanções, mas em âmbito diplomático e internacional essas sanções não se traduzem em prisões ou multas, mas sim em consequências morais e politicamente sensíveis ao prestígio e credibilidade de um país perante a comunidade externa (seria impossível, por exemplo, privar a liberdade de um país ou imputar-lhe multa, já que os tribunais internacionais não possuem meios para impor essa tal sanção, considerando, inclusive, o respeito à soberania das nações).

Nesse sentido, não podemos dizer que os pactos internacionais ou as decisões dos órgãos responsáveis pela avaliação de seu cumprimento sejam “irrelevantes juridicamente”. As regras existem e possuem caráter obrigatório. Trata-se de um pacto/contrato, pautado num dos mais importantes princípios que orientam o direito internacional: o princípio da boa-fé. Assim, ao aderir espontaneamente a um pacto ou tratado, uma nação assume compromissos e gera expectativas quanto ao seu cumprimento.

As sanções são diferentes daquelas impostas no contexto nacional, mas em ambos os casos, nós (indivíduos) e elas (nações) temos o que podemos chamar de “livre arbítrio”, “autonomia”, “soberania” e “autodeterminação” para cumprir as regras ou não, desde que assumindo as consequências de nossas ações. Para nós, as consequências podem ser sociais, morais, éticas e jurídicas, inclusive com privação de liberdade ou outra forma de sanção/compensação do dano causado. Para elas (as nações) as consequências são éticas, morais, políticas e diplomáticas, mas isso não quer significar que a regra seja mais ou menos relevante.

Nesse sentido, o Comitê já se posicionou em relação ao caso Lula e ao Brasil, ao afirmar que é incompatível ao nosso país que impeça ou frustre a análise pelo Comitê de um comunicado alegando violação ao Tratado, ou que afirme que a expressão dos entendimentos do Comitê é frívola e fútil” [grifo nosso].

Se conferimos relevância às consequências morais e políticas que atingem nosso país na esfera internacional e perante os órgãos/tribunais de direitos humanos é o que está em questão agora. Mas, pelo que já vimos, isso não ocorre.

[1] Por meio de nota, a defesa do Ex-Presidente detalha os fatos denunciados: "As evidências apresentadas na ação se reportam, dentre outras coisas: i à privação da liberdade por cerca de 6 horas imposta a Lula em 4 de março de 2016, por meio de uma condução coercitiva sem qualquer previsão legal; (ii) ao vazamento de materiais confidenciais para a imprensa e à divulgação de ligações interceptadas; (iii) a diversas medidas cautelares autorizadas injustificadamente; e, ainda, (iv) ao fato de Moro haver assumido em documento enviado ao Supremo Tribunal Federal, em 29/03/2016, o papel de acusador, imputando crime a Lula por doze vezes, além de antecipar juízo de valor sobre assunto pendente de julgamento".

[2] Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992.

[3] Decreto nº 592:
Art. 1° O Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, apenso por cópia ao presente decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém.
Art. 2° Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 06 de julho de 1992; 171° da Independência e 104° da República.

As mais quentes do dia

Apoiar Saiba Mais

Pra quem deseja ajudar a fortalecer o debate público

QR Code

Ajude-nos a continuar produzindo jornalismo independente! Apoie com qualquer valor e faça parte dessa iniciativa.

Quero Apoiar

Este site utiliza cookies e solicita seus dados pessoais para melhorar sua experiência de navegação.