O camarada Bakunin
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O camarada Bakunin

18 de maio de 2020
O camarada Bakunin

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Não é fácil para um professor que dá aulas de filosofia política viver numa época em que uma parte significativa dos jovens se informa por vídeos no youtube com celebridades digitais que defendem ideias como “terra plana” e “nazismo de esquerda” (geralmente um combo ideológico, alinhando com uma nostalgia meio oligofrênica do tempo da Contrarreforma Católica e do tribunal do Santo Ofício). A tarefa de dividir e classificar doutrinas políticas é sempre árdua e redutora porque a vida, assim como o pensamento e a ação política, não costumam a ser facilmente encaixotados, especialmente por um tutorial ideológico desses que você acha na net.

Apesar disso, algumas velhas reduções cabem bem nas narrativas que ajudam a dar sentido a disputas políticas na modernidade. Uma delas diz respeito à velha treta envolvendo marxistas e anarquistas. Uma peleja antiga, que remonta ao tempo da Primeira Internacional, na época em que o velho Marx, e o revolucionário russo Mikhail Bakunin, andavam pelas terras frias do Norte, tentando organizar as forças de esquerda sobre a bandeira de um movimento operário internacional unificado.

A disputa entre os dois deve ter sido realmente significativa. Tão significativa que, mais de 150 anos depois, eu mesmo pude presenciar as reverberações do racha bem diante de mim, aqui mesmo em Natal, em plena BR-101.

Era julho de 2013 e os protestos do inverno daquele ano (as chamadas de “Jornadas de Junho”) começavam a dar sinais de cansaço quando as grandes centrais sindicais convocaram os movimentos sociais para ocupar a rua. CUT, CSP-Conlutas, MST, MTST e diversos movimentos populares se organizaram em todo Brasil para colocar o cordão encarnado na rua. Aqui na taba de Poty a manifestação sairia da frente do shopping Midway, tradicional ponto de partida do circuito Shopping-Shopping que embalou as grandes manifestações políticas potiguares na segunda década do século XXI.

Enquanto a turma da bandeira vermelha (com seus diversos matizes) discutia a localização dos carros de som, a trajetória da manifestação, se poderia ou não falar mal de Dilma e se deveríamos esperar que os médicos (que estavam afastados dos meros mortais das outras categorias, aguardando em frente ao Hospital Walfredo Gurgel) se juntassem a nós; um grupo bem numeroso de jovens anarquistas já parecia estar de saco cheio da demora.

Vestidos de preto, alguns com máscaras e capuzes, começaram a se avolumar na vanguarda da passeata. Antes que a “companheirada” dos sindicatos chegasse a um consenso, a meninada da bandeira negra começou a se deslocar no sentido de Ponta Negra, obrigando a passeata a se mover para não perder a unidade e se dispersar pela BR, o que, nesses tempos de repressão, poderia ser um convite para uma saraivada de balas de borracha e bombas de gás lacrimogênio.

Ao chegarmos ao lado de uma Arena das Dunas ainda em construção, alguém teve a ideia de parar a manifestação para que lideranças sindicais e partidárias pudessem discursar conclamando os companheiros operários que trabalhavam no estádio que iria sediar os jogos da Copa do Mundo, pudessem se juntar à manifestação.

A reação dos anarquistas, mesmo diante dos apelos acalorados, quase suplicantes, dos oradores do carro de som para manter uma unidade de ação e para não dispersar a manifestação, foi a de estirar o dedo médio, dar as costas e continuar a caminhada em direção a Ponta Negra. Eles não queriam ouvir discursos. Não queriam ter porta vozes para falar por qualquer um deles. Não se interessavam pelas regras e metodologias rígidas de mobilização que os movimentos sociais mais orgânicos costumam a cultivar com muito apreço. Estavam cagando e andando para qualquer partido ou liderança. Simplesmente se distanciaram e sentaram-se no chão da BR, bem longe, para mostrar a sua discordância e afirmar sua diferença.

Ali, no chão da BR, se via, mais uma vez, Marx e Bakunin colidirem e racharem, seguindo caminhos divergentes na trilha da revolução.

Na verdade, os marxistas, socialistas e sociais democratas, costumaram sempre a negar as tendências progressistas do anarquismo. Até hoje é comum ouvirmos comunistas mais velhos (sim, ainda existem comunistas old school) acusando os anarquistas de reacionários.

Isso tem a ver com o fato de que, para um anarquista, todo sistema teórico rígido é um obstáculo para o progresso, e que revoluções não acontecem em função de indivíduos, sociedades secretas, ou partidos organizados, instruídos para assumir o controle do Estado. Revoluções são acontecimentos gestados nas profundezas das forças vivas da sociedade, no tecer silencioso do espírito, na densidade pouco visível do mundo da vida. Construídas por longos e longos anos, as revoluções são como movimentos tectônicos permanentes no tecido da história, que irrompem de modo súbito, quando menos se espera.

Pelo menos era nisso que o camarada Bakunin parecia acreditar.

Apesar de não ser nenhum grande teórico daqueles de carteirinha e titulação acadêmica notável, e não ter escrito o mesmo volume de obras com peso filosófico que Marx (que era um pensador afiado), Bakunin fez seu nome no século XIX como um sujeito de ação. Sua atividade revolucionária incessante se tornou mito e correu século XX a fora estimulando anarquistas nos mais diversos cantos do globo.

Bakunin era um aristocrata russo (o primeiro de uma série de anarquistas que emergiu da elite russa, como Kropotikin e Leon Tolstoi). Ele nutria um desprezo atávico pelas convenções burguesas e nisso também se diferenciava de Marx, filho de uma família de pequenos burgueses judeus-alemães. Conta-se que ele tinha apetites enormes e era capaz de falar a noite inteira e beber conhaque com a desenvoltura de quem estivesse tomando água tônica. Chegou a fumar 1600 charutos por mês durante o tempo em que passou preso em uma masmorra na saxônia, na maior parte do tempo acorrentando a uma parede de sua cela; após participar, por influência do compositor Richard Wagner, das revoltas de 1848. Com uma aura de santo andarilho, nunca desenvolveu nenhum tipo de sentimento natural ou intelectual de propriedade e viveu em trânsito, zanzando de um país para outro, de prisão em prisão, de conspiração em conspiração, de revolta em revolta, sobrevivendo da ajuda de amigos e admiradores.

Marx e Bakunin se desentenderam em 1864, durante o congresso da primeira Internacional. Marx controlava o Conselho Geral da entidade, e não estava disposto a ceder seu espaço político para uma outra liderança; mesmo uma como Bakunin, que a última coisa que parecia querer ser era qualquer coisa que se parecesse com uma liderança.

Apesar disso, os dois tinham muita coisa em comum. Ambos se embriagaram na mesma fonte: o hegelianismo, corrente que dominava o pensamento europeu e que influenciou tanto a esquerda socialista franco-germânica quando a reacionária direita prussiana. Ambos também eram profundamente autocráticos, intensamente cientes de suas próprias ideias e com uma personalidade marcante que causava forte impressão nos que os circundavam. Apesar disso, enquanto Bakunin cultivava seu próprio mito romântico, misto de aristocrata boêmio com black-block carbonário; Marx nunca se afastou de seus hábitos pequeno burgueses e, entre desvios e derrapagens pontuais, viveu sua velhice com a vida de um típico pai de família do século XIX.

Na época em que os dois se confrontaram, Bakunin era um federalista que se opunha a qualquer proposta de apropriação do Estado por parte de uma classe revolucionária. Sua intenção era a demolição radical e súbita da estrutura Estatal. Marx, por sua vez, se apresentava como um anti-liberal centralista que defendia a nacionalização dos meios de produção e a apropriação proletária do Estado.

Três anos antes de morrer, Bakunin escreveu um artigo para um jornal de Genebra, em 26 de Setembro de 1873, em que anunciava seu afastamento da vida pública. Na altura de seus 59 anos já estava devastado por uma vida sem tréguas, onde cada prisão, cada revés político, cada derrota da sua utopia revolucionária revigorava paradoxalmente seu espírito na medida em que devastava inexoravelmente, cada vez mais, o seu corpo.

Em um bilhete, endereçado à irmã, indicava que suas inúmeras prisões não haviam mudado: “nenhum dos meus antigos sentimentos; pelo contrário, tornou-os mais ardentes e absolutos do que nunca e, daqui por diante, tudo que conta para mim na vida pode ser resumido em uma só palavra: liberdade”.

Mesmo assim, ao anunciar seu afastamento do campo de batalha político Bakunin não deixou de desfiar seu amargor diante das supostas “falsificações marxistas” que teriam sabotado sua ação junto a Internacional e distorcido a luta dos trabalhadores.

Apesar da rusga e do racha da década de 1860, apenas em 1896, treze anos após a morte de Marx, e vinte anos após a de Bakunin, seus seguidores, àquela altura já autodenominados “anarquistas”, foram excluídos em definitivo da Internacional.

Para a maioria dos observadores externos, liberais, sociais democratas e conservadores de todos os tipos e gêneros, não há uma distinção muito clara entre seguidores de Marx e de Bakunin. Apesar disso já estava posto, como um traço de origem, na gênese das lutas políticas da modernidade, as distinções que na história das revoluções, lançam os adeptos da bandeira vermelha contra os da bandeira negra, para a delícia dos reacionários de todos os matizes ideológicos, sempre exultantes diante de cada divisão nas hostes da esquerda radical. Mas essa é uma outra história.

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