O Exército contra o povo
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O Exército contra o povo

14 de abril de 2019
O Exército contra o povo

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“Aquela campanha lembra um refluxo para o passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.” (Euclides da Cunha)

Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a história, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados. (Euclides da Cunha) [1]

Em vídeo divulgado pela Ponte Jornalismo, os moradores se aglomeram em volta do carro baleado, naquele momento já sendo periciado pela Polícia Civil, e uma pessoa grita para os militares: “a gente é trabalhador, vocês são assassinos”. (Brasil de Fato)[2]

Canudos continua.

Ao ler a notícia de que um homem, sua mulher, uma criança de 7 anos, o sogro e uma amiga da família foram vítimas de 80 tiros de ao menos uma dezena de militares do Exército, não pude evitar a imagem, lida no grande “Os Sertões", de um velho, dois homens feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente 5 mil soldados.”

Resguardadas as devidas proporções com esse fato histórico, ocorrido há mais de um século, a notícia deste 07 de abril de 2019 nos revela o mesmo lastro sociocultural enraizado nas práticas e nas concepções do exército brasileiro (sim, com letra inicial minúscula mesmo!): a postura antipovo.

A máquina mortífera que alveja com 80 tiros uma família de trabalhadores não é a mesma que se curva ao poder econômico, dando-lhes as garantias de pilhagem do patrimônio nacional.

Agiu o exército como criminoso na Guerra de Canudos, fato devidamente registrado pelo próprio Euclides da Cunha – ele mesmo, ex-militar que fazia a cobertura jornalística de Canudos; agiu como criminoso no Golpe Militar de 1964, servindo a uma elite política que contrariava os interesse do povo brasileiro e provocando um estado de exceção que levou à morte e ao desaparecimento centenas de brasileiros e brasileiras; agiu como criminoso ao alvejar com 80 tiros uma família.

80 tiros numa família. Isso não pode ser justificado como mera confusão com carro de bandidos. Isso é impensável quanto ao mínimo e razoável que julgamos ser civilização. Quanto ao mínimo de preparo que imaginamos ter as forças armadas para enfrentar com responsabilidade qualquer situação. 80 tiros do exército contra uma família significa um braço das forças armadas agindo como jagunço. É o Estado agindo como assassino. Isso é muito grave.

A amiga da família, que escapou da chacina, em entrevista à Globo, relatou que “mesmo depois dos passageiros no banco de trás terem fugido com a criança no colo, os militares continuaram atirando.”

Em Canudos, contra um velho, dois homens e uma criança, continuaram atirando.

Que gana, que índole explicam a brutalidade de homens fardados contra as pessoas mais fragilizadas da nação?

Não dá para vislumbrar nada que não seja a formação militar calcada no desprezo pelo outro, na desumanização do outro, especialmente se trabalhador, pobre, negro e, mais ainda, se protagonista de ação política que questione a hierarquização e as estruturas de injustiça e desigualdades.

Este episódio do dia 07/04 é mais um que crava no exército brasileiro, a estatura minúscula de uma força que só ruge contra o povo.

Resta saber se o Estado brasileiro, já pequeno diante do mundo, reparará a família e a nação dando aos responsáveis a punição merecida por mais um crime contra seus concidadãos. Na atual conjuntura, isso já será um alento.

[1] CUNHA, Euclides. Os Sertões. São Paulo: Três, 1984. p. 351

[2] BRASIL de Fato. Exército atira 80 vezes em carro de família no RJ e mata Evaldo Rosa, 51, músico. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2019/04/08/exercito-atira-80-vezes-em-carro-de-familia-no-rj-e-mata-evaldo-rosa-51-musico/ Acesso em: 08 abr. 2019.

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