O Fascismo é eterno?
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O Fascismo é eterno?

1 de maio de 2021
O Fascismo é eterno?

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Em O fascismo eterno, conferência dada por Umberto Eco no dia 25 de abril de 1995 no simpósio organizado pelos departamentos de italiano e francês da Columbia University e publicado em forma de livro no Brasil pela editora Record em 2018 (tradução de Eliana Aguiar) ele afirma, entre outros aspectos, que embora haja algumas diferenças entre as experiências fascistas em alguns países “é possível indicar uma lista de características típicas do que chama de fascismo eterno (ou Ur-fascismo) e lista 14 características e diz que embora “muitas se contradigam entre si e sejam típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo, é suficiente que uma delas se apresenta para fazer com que se forme uma nebulosa fascista”.

Entre elas, o culto à tradição, a recusa da modernidade, o irracionalismo (ações realizadas sem nenhuma reflexão) a intolerância (não se aceitam críticas), a busca do consenso com base no medo à diferença, o fascismo como resultado da frustração individual ou social, a obsessão da conspiração (“os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir uma conspiração é fazer apelo à xenofobia”) o culto à violência (“o pacifismo é mau, é conluio com o inimigo e a vida é uma guerra permanente”), o culto do heroísmo estreitamente ligado ao culto da morte (“não é por acaso que o mote dos falangistas era “vida La muerte” - a dos outros, para o qual os fascistas não têm qualquer empatia - o machismo (“que implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais não conformistas, da castidade à homossexualidade”, o populismo (de direita) e seu líder se apresentando como intérprete e o empobrecimento cultural, da linguagem, dando como exemplo os textos escolares nazistas ou fascistas “que se baseavam em um léxico pobre e uma sintaxe elementar, com o fim de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico”.

No livro “Como funciona o fascismo” (editora LP&M, 2018) de Jason Stanley, professor de filosofia da Universidade de Yale, que constata como nos últimos anos diversos países houve um crescimento da extrema-direita (Rússia, Hungria, Índia, Turquia, Estados Unidos, Brasil etc.) o autor, como o título indica, procura compreender como funciona o fascismo, a política fascista, sobretudo suas táticas para alcançar o poder e entre elas o uso por parte de seus líderes do culto ao passado (mítico), o cultivo do medo (que substitui a compreensão), o anti-intelectualismo (anti-intelectual, antiuniversitário e anticientífico), o irracionalismo (teorias conspiratórias etc.), além da defesa da hierarquia, da lei e da ordem (capitalista) e apelos a uma noção (vaga) de pátria. E, claro, o uso das mídias, em particular das redes sociais, para difundir ódio, intolerância, notícias falsas e mentiras.

E destaca que um dos sintomas mais marcantes da política fascista é a divisão na sociedade, a polarização, destinada a dividir a população entre nós e eles: “todo o mecanismo da política fascista trabalha para criar e solidificar essa distinção”, assim como o uso eficaz do ressentimento, que eles sabem utilizar em seu favor.

Para W. Reich, no livro Psicologia de massas do fascismo, publicado em 1933 (no Brasil, foi publicado pela editora Martins Fontes em 1988) o ressentimento é um aspecto central para se compreender difusão do fascismo como “expressão da estrutura de caráter irracional das pessoas”. Ele analisa o que chama de impulsos reprimidos, a função social da opressão e o papel fundamental que a família (autoritária) e a igreja desempenharam historicamente para explicar a ascensão (e permanência) do fascismo (tem um capítulo que trata justamente disso: a ideologia autoritária da família na psicologia de massas do fascismo).

O que Reich analisa no livro são a ideologia e os movimentos fascistas como rebelião dos Zé-ninguéns, no qual as paixões políticas são habilmente usadas como forma de “purgar” o ressentimento dos excluídos (e desorganizados politicamente) contra uma suposta elite que os desprezam, mas mostrando como são exatamente essas elites que cultivam isso e se beneficiam com o fascismo.

Há particularidades que é preciso analisar. No caso do Brasil, a origem do fascismo está na formação da Ação Integralista Brasileira em 1932, liderada por Plínio Salgado e dois livros publicados recentemente (2020) contribuem para sua compreensão e para mostrar como o movimento da extrema direita ainda se mantém no país e que tem no Integralismo sua fonte de inspiração. Os livros são O fascismo em camisas verdes: do integralismo ao neointegralismo (Rio de Janeiro, FGV, 2020) de Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto, professores da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e Fascismo à brasileira: como o integralismo, maior movimento de extrema-direita da história do país se formou e o que ele ilumina sobre o bolsonarismo, de Pedro Dória (Editora Planeta, 2020)

O primeiro analisa o integralismo no Brasil (formação e princípios, líderes, expansão e crescimento etc., até o que chamam de integralismo do século XXI (das redes sociais à violência política), analisando a formação da Frente Integralista Brasileira, o neointegralismo e o Prona, as manifestações contra Dilma Rousseff e o bolsonarismo e a violência política.

O outro (Pedro Dória) reconstitui a trajetória do Integralismo no Brasil nos anos 1930, a formação de um líder fascista (Plínio Salgado), crescimento, embates com os comunistas, à adesão ao Estado Novo e à tentativa de golpe contra Getúlio Vargas etc., e no ultimo capítulo intitulado Plínio e Bolsonaro, procura estabelecer uma relação, no plano da idéias, entre ambos, como o desprezo aos ritos da democracia liberal, pela imprensa livre e o tratamento da política como uma guerra, com seus inimigos.

O fato é que o tema se atualiza num momento em que há um crescimento de grupos fascistas e neonazistas no país cujo perigo é não apenas sua expansão, como o incentivo e impunidade de seus atos e práticas antidemocráticas.

Leandro Pereira Gonçalves e Odilon Caldeira Neto integram o Observatório da Extrema Direita (vinculado a Universidade Juiz de Fora) formado com o objetivo de monitorar e analisar movimentos, lideranças e organizações da extrema-direita não apenas no Brasil, mas também em outros países, observou no país o uso da simbologia e de reivindicações de grupos neofascistas internacionais em manifestações recentes e afirmam que não pode ser atribuída apenas à expansão da internet, embora esta tenha um papel importante para a formação de uma rede de comunicação entre os seus integrantes, como ocorreu tanto no combate ao governo de Dilma Rousseff, participando ativamente das manifestações contra ela, como nas eleições de 2018, apoiando o candidato da extrema-direita. Mas o fundamental meso é que esses grupos encontram espaços na sociedade, inclusive tolerância e isso pode implicar na sua aceitação e, pior, naturalização.

Como mostram os autores, o ovo da serpente foi chocado nos anos 1930 com a formação e desenvolvimento do Integralismo. Mesmo derrotado, como ocorreu com a prisão de muitos dos seus integrantes na frustrada tentativa de golpe em 1938 contra Getulio Vargas (embora tenham apoiado a instalação do Estado Novo, golpe de novembro de 1937) e especialmente com o fim da Segunda Guerra Mundial (1945) e a derrota nazi-fascista, o movimento da extrema-direita hibernou, mas ao longo do tempo, se articulava, encontrando uma situação mais favorável para sua expansão com os desdobramentos das manifestações de junho de 2013, quando a direita passa a ocupar as ruas e as redes sociais, em apoio à candidatura de Bolsonaro em 2018.

Esses grupos foram ativos antes e também continuam depois das eleições, agora em ambiente mais favorável. No dia 10 de dezembro de 2018, por exemplo, um grupo intitulado “Comando Insurgência Popular Nacionalista da Grande Família Integralista Brasileira” invadiu o campus da Universidade Federal do Estado do Rio (UNIRIO) e queimou três bandeiras com símbolos antifascistas.

Na madrugada do dia 24 de dezembro de 2019, membros do mesmo grupo lançaram dois coquetéis molotov na sede produtora do grupo Porta dos Fundos, sem que houvesse punição (um dos membros identificado pela policia, fugiu para Rússia e, até o momento, não houve por parte do Ministério de Relações Exteriores iniciativas de extradição). (https://veja.abril.com.br/brasil/suposto-grupo-integralista-diz-ter-atacado-sede-do-porta-dos-fundos/).

Não foi por acaso também que um dos ex-secretários de Cultura do governo Bolsonaro, Roberto Alvim, num vídeo que teve grande repercussão, tornado público no dia 16 de janeiro de 2020, pediu uma “arte heróica e imperativa”, citando (sem nomear explicitamente), o ministro da propaganda nazista Joseph Goebbels, imitando até mesmo a estética do líder nazista (ver a análise do discurso de Alvim por Thais de Santis Rocha mestre em História Social pela USP, com ênfase em História da Alemanha nazista em https://recontaai.com. br/analise-da-estetica-nazista-do-discurso-de-alvim/).

No dia 24 de março de 2021, enquanto o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), conduzia a sessão em que parlamentares haviam convidado o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, para discutir a atuação do ministério em relação à aquisição de vacinas contra a covid-19, Felipe Martins, assessor especial da Presidência para Assuntos Internacionais, que estava sentado atrás do presidente do Senado, fez um gesto com a mão — juntando os dedos polegar e indicador em um círculo e deixando os outros três dedos esticados — que no Brasil é conhecido como um gesto obsceno, um xingamento e nos Estados Unidos é usado por supremacistas, associando às letras W e P, de White Power (poder branco) e constando na lista de símbolos de ódio, considerado “uma verdadeira expressão da supremacia branca” pela Liga norte-americana Antidifamação (que monitora crimes de ódio). As imagens viralizaram e teve grande repercussão na imprensa.

No dia seguinte, a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão no Rio Grande do Sul encaminhou para o Distrito Federal um pedido de abertura de investigação contra o assessor do presidente, para apurar “suposta prática de crime de racismo e improbidade cometido por servidor público federal, no exercício do cargo”.

Gestos nazi-fascistas também estiveram presentes na chamada Marcha dos 300, um grupo de extrema-direita que acampou por diversos dias em Brasília (DF) que, apesar do nome a única marcha foi para insultar o STF e defender ditadura militar, não reunindo nem 1/5 dos 300 anunciados, e que, essencialmente carregou, como afirma Odilon Caldeira Neto “toda uma simbologia e uma ritualística que remete à experiência do neofascismo internacional, como os protestos da extrema-direita em Charlottesville, bem como ações de movimentos identitários da direita radical européia. São grupos que querem retomar um processo de homogeneidade cultural e a criação de uma identidade fundamentalmente autoritária”.

Em um dos dias que estiveram acampados, desfilou em frente ao prédio do Supremo Tribunal Federal carregando tochas, num ritual semelhante às muitas manifestações racistas da Ku Klux Klan nos Estados Unidos e nazistas na Alemanha. E enquanto estavam acampados defendendo ditadura, houve uma live do presidente da República, no dia 29 de maio de 2020, em que ele aparece tomando leite ao lado de dois assessores. Na matéria Copo de leite: Bolsonaro usa símbolo nazista de supremacia racial em live publicada na revista Fórum por Lucas Rocha no dia 29 de maio de 2020, o autor afirma que “apesar do presidente dizer que estaria cumprindo um desafio de ruralistas, pesquisadores enxergam uma correlação do gesto com movimentos neonazistas – que adotam o copo de leite como símbolo”.

E cita Adriana (Abreu Magalhães) Dias, doutora em antropologia social pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) estudiosa do nazismo na qual afirma haver uma referência clara entre o episódio e o neonazismo: “O leite é o tempo todo referência neonazista. Tomar branco, se tornar branco. Ele vai dizer que não é que é pelo desafio, mas é um jogo de cena, como eles sempre fazem”. (https://revistaforum.com.br/politica/copo-de-leite-bolsonaro-usa-simbolo-nazista-de-supremacia-racial-em-live/).

A referência a pesquisadora do tema do nazismo é importante. Uma matéria publicada no jornal da Unicamp no dia 28 de setembro de 2018 por Luiz Sugimoto informa que a sua tese de doutorado, Observando o ódio, ela pesquisou sites, blogs, fóruns e comunidades neonazistas na rede mundial de computadores, e em documentos e atividades não digitais e que buscou descrever como os integrantes de grupos de extrema-direita cultivam o ódio, assim como descreve as suas formas de ação. “O subtítulo ‘Entre uma etnografia do neonazismo e a biografia de David Lane’ foca (.) no líder chamado de ‘Hitler americano’ e “Herói da guerra racial”, em seu papel na formação do atual estágio do neonazismo nos Estados Unidos e no mundo, na repercussão do movimento no Brasil e em como a obra do biografado vem sendo usada para formatar uma união da extrema-direita no âmbito global”.

Entre outros aspectos, para evidenciar a permanência do ódio e da intolerância, que são combustíveis do nazi-fascismo, é citado na matéria uma afirmativa dela que “Há uma postagem antissemita no Twitter a cada quatro segundos; uma postagem em português contra negros, pessoas com deficiência e LGBTs a cada 8 segundos” e complementa “o fato é que nesse longo período de pesquisa vi uma explosão do movimento de extrema direita, bem como a situação se agravar e se radicalizar (https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/09/28/um-mergulho-no-universo-neonazista).

Os fascistas são demagogos, com uma política enraizada no medo à liberdade que se traduz, entre outros aspectos, na violência contra os que discordam deles. Como mostra Umberto Eco, ao analisar suas características, é um fenômeno que não desapareceu com o fim da Segunda Guerra Mundial e a derrota nazi-fascista. Explorando e cultivando ódios e ressentimentos, continua a existir, escondendo o vazio intelectual, combatendo a ciência, o conhecimento com slogans e insultos, em vez de argumentos.

Para entender com maior alcance os perigos do fascismo, é preciso chamá-lo pelo nome e observar não apenas as ações de grupos extremistas, como também de indivíduos e seus discursos de ódio e intolerância, assim como uso da força e da violência quando estão em grupos, que por sua vez dialogam com outros grupos extremistas que existem em outros países. Nesse sentido, para se preservar o que resta da democracia no país, não se pode e nem deve normalizar os discursos e muito menos as práticas fascistas. Como disse Umberto Eco o fascismo é eterno enquanto durarem às condições que o tornaram possível e por isso “nosso dever é desmascará-lo e apontar o dedo para cada uma de suas formas – a cada dia, em cada lugar do mundo”.

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