O fiscal de facebook
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7 de maio de 2018
O fiscal de facebook

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O Fiscal do Facebook está sempre atento a todo e qualquer movimento suspeito, eternamente ligado, permanentemente à espreita de alguma opinião manifestada na sua TL. Ao deparar-se com palavras alheias, versando sobre os mais diversos assuntos, interrompe a vigília, sai da tocaia e arma o bote, posicionando-se firmemente contra o que foi dito, desconstruindo o discurso com sua pregação extrema, dogmática, baseando-se em valores distintos de quem opinou, mas com tamanha ênfase que parece não admitir uma opinião diferente da sua. Quando não é possível atacar o discurso, alfineta-se o emissor, numa velha e manjada tática retórica de tentar retirar a credibilidade de quem fala, já que não se pode discutir o que se diz. Soa como se o sujeito não tivesse direito a ter uma ideia distinta ou lhe fosse negado o direito de dizer o que pensa. Funciona assim: “Você é homem! Como pode defender as mulheres?” Aplica-se para bancos e negros, héteros e homos, ricos e pobres, e por aí vai.

O habitat natural de um típico fiscal de redes sociais é o espaço destinado aos comentários. Ali é onde ele se sente mais à vontade, serelepe e desenvolto. Digita incansavelmente, feliz e extasiado, olhos injetados da tela pro teclado, comentando, opinando, interferindo. A caixa de comentários é o seu playground. Afinal, para ele não requer esforço nenhum comentar, uma vez que, para um síndico de Facebook que se preze, a disposição para tecer longas opiniões sobre as postagens alheias é ilimitada, já que acredita verdadeiramente que a razão é algo que se conquista através do cansaço e consequente desistência do interlocutor. Para ele, este incansável das pelejas verbais, uma discussão não se vence com argumentação pertinente, coerência de conteúdo ou informações corretas. O vencedor, para ele, é quem continua falando por último. Simples assim. Por isso, faz uso exaustivo de clichês e lugares-comuns, além de abusar das repetições estratégicas bastante eficazes para cansar os oponentes.

A autoconfiança é um traço evidente da personalidade (só encontrando paralelo na inegável burrice, mas sobre isso, a gente fala depois) deste moderador virtual, tendencioso conciliador de opiniões, abnegado separador do joio do trigo com estranha fixação pelo joio. O Fiscal é o dono da razão e, como tal, precisa mostrar-se seguro de si. Sua postura deve ser altiva, porém, firme. Deve portar-se de maneira ousada, com demonstrações de força a não deixar dúvidas. Mas como fazer isso? Você pode estar se perguntando, ao que respondo de imediato: com a boa e velha agressividade sem a qual as redes sociais não seriam essa maravilha de espetáculo humano.

É até um dever pedagógico mostrar ao outro que ele está redondamente enganado e, com muito tato, dizer que ele é um idiota por pensar daquela forma, um filho da puta por manifestar aquela opinião publicamente e que merece uma morte lenta e dolorosa por ter a petulância de pensar diferente. Por mais que alguns fiquem chateados com essas críticas construtivas, um dia eles vão agradecer por terem tido seus olhos abertos, resgatados das cavernas ideológicas onde se encontravam, sem poder vir aqui fora, contemplar o mundo em todo o seu vasto esplendor.

Entretanto, para não soar sempre rude, há um estratagema bastante utilizado para suavizar palavras mais contundentes e declarações fortes, por mais sério e implacável que se tenha sido. Basta encerrar a declaração com “kkk”,“Rsrsrs” ou qualquer outro tipo de risadinha virtual. Funciona assim: “você é um jumento! Tão burro que não se aproveita nada do que escreve, tamanha a touperice do que fala! Rizus!” Aí, fica tudo certo.

O síndico de redes sociais tem um papel legislador. É um moralista que tem a missão de zelar pela honra e os bons costumes, mantendo a ordem e o decoro diante das famílias brasileiras e do amigo internauta. Por isso, deve estabelecer regras rígidas de conduta, para botar as coisas no lugar, acabando de vez com essa bagunça em que o país se transformou. Essa postura, por vezes, lhe gera o apelido de “caga-regra”, mas é um preço pequeno a se pagar pela preservação da correção e da verdade. Porque, se não fosse ele, quem iria alertar as pessoas, dizendo-lhes em quem votar, para que time torcer, o que se deve dizer, de que estilo musical é certo gostar, que filmes assistir.

O Fiscal de rede social é rapaz que tem muito amor pela vida. A vida dos outros, claro. Estão sempre de olho, prontos para dar pitacos, preocupados com que sejam felizes. É uma pessoa atenciosa, prestativa, e bem intencionada, sempre disposta a contribuir com um mundo melhor, dizendo exatamente o que devemos fazer, com riqueza de detalhes, rigor militar e completo desprendimento para nos passar um extenso manual de boa conduta. Porque, para o nosso bem, devemos ter disciplina.

Se você gosta de sanduíche, por exemplo, um bom patrulheiro do Twitter vai lhe condenar por preferir um alimento de origem estrangeira em vez de uma comida típica de sua região. O mesmo vale para o cinema, a música ou o futebol. Experimenta gostar de um time de fora e postar a foto no Instagram pra ver o que vão escrever sobre você.

A polícia do Facebook acha um absurdo que os radicalismos partidários ceguem pessoas com tanto potencial para estarem “do lado do bem”, da moral, da justiça e dos heróis nacionais. Condenam a postura radical e iludida, inflexível e raivosa, que fazem destes, militantes contrárias ao seu pensamento e caricaturas agressivas de si mesmos. Ao visualizar argumentos extremos e pouco consistentes destes jovens equivocados, por um breve momento, chegamos mesmo a concordar com o Fiscal. O problema é o que vem a seguir. Na tentativa de rebater as palavras contaminadas de ideias pré-formatadas, doutrina ideológica e parcialidade atroz, ele recorre a ideias igualmente formatadas, doutrinas ideológicas diametralmente opostas e parcialidade tão atroz quanto tudo que condena. Coerência, aqui jaz.

Se ignorá-lo é difícil, discutir com ele é inútil. No tempo em que você posta uma resposta, ele faz um tratado de enormes parágrafos, rebatendo tudo o que você disse e é capaz de fazê-lo repetidamente e infinitas vezes, pois, ao que parece, ele passa o dia inteiro conectado, tendo como única atividade comentar a vida e as opiniões alheias. É um expert no assunto (aliás, em qualquer assunto), um trabalhador dos chafurdos, um operário da resenha. E em terra onde há especialistas deste quilate e nível de dedicação, amadores como nós não se criam.

O grande sonho do pensador das redes sociais é por um fim a sua tão extenuante busca, consolidando um pensamento único, unânime, inquestionável, consensual, para que todos possam viver em paz, sem discordâncias e desentendimentos mais sérios, já que terão a oportunidade de concordarem com a única opinião válida: a sua!

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