O Flamengo que envergonha
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O Flamengo que envergonha

23 de fevereiro de 2019
O Flamengo que envergonha

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Não faz muito tempo que o Flamengo era fonte de constrangimento para sua torcida. O clube ostentava um histórico de glórias e um repertório de conquistas que muito nos orgulhavam, mas paradoxalmente nos fazia corar ao não honrar seus compromissos financeiros mais básicos. O time que deveria brigar por títulos era o mesmo que atrasava os salários de seus jogadores, exatamente os responsáveis por lutar pelas vitórias no campo de jogo. Quando ganhávamos um clássico ou jogo importante, perguntávamos a nós mesmos até quando aquilo aconteceria, considerando que os atletas são seres humanos que têm famílias e compromissos a cumprir, podendo ter o ânimo e a motivação vencida pelos boletos a vencer. Se tentávamos argumentar nossa suposta superioridade hierárquica no histórico lúdico-desportivo futebolístico, logo um torcedor adversário nos jogava na cara o óbvio. Um clube que não paga o que deve não tem envergadura moral pra querer ser superior.

O Flamengo inadimplente não era apenas uma instituição insolvente. Num universo de apaixonados, em que o esporte mais popular de um país converte seus torcedores em devotos, a sensação de pertencimento a algo maior, o senso de comunidade e a ideia de que formamos todos uma nação não deixavam dúvidas: éramos nós os indignos. Quando o Flamengo devia dinheiro, dava calote em fornecedores, não pagava salários em dia nem recolhia seus impostos, os dedos acusadores se voltavam contra nós. Porque sempre tivemos o clube como parte integrante de nossa identidade. Éramos nós no SERASA, éramos nós os devedores, era o nosso nome sujo.

A simbiose clube e torcida, o vínculo inquebrantável que nos faz vibrar com as vitórias como se fossem nossas era um lado da moeda, mas havia outra face, trazendo derrotas improváveis, campanhas vexatórias e gestões temerárias. Estava tudo na nossa conta, o bônus, mas também o ônus. Como o escritor Ruy Castro declarou ao escrever o livro “O Vermelho e o Negro”, aquela não era uma biografia de outras pessoas, mas a sua própria, pois a vida do Flamengo era a sua vida.

Evidentemente, o desastre administrativo refletiu em campo. Logo, os títulos rarearam, as vitórias importantes dependiam de lampejos ou dias afortunados e o caos de seguidas gestões nos conduziram ao errante caminho do meio da tabela. Nossa autoestima não passava incólume. Incrédulos, pensávamos se não haveria num contingente de milhões de adeptos, uma pessoa boa de administração que pudesse assumir o leme e reverter a situação. Resignados, já imaginávamos ser coisa do destino, um fardo que deveríamos carregar para sempre: o da incompetência gerencial. Éramos todos incapazes de fazer contas, de gerir um clube de futebol, de converter em receita uma massa de algumas dezenas de milhões de torcedores em receita. “Aceita que dói menos”, dizíamos a nós mesmos como um mantra repetido ao encostarmos a cabeça no travesseiro.

Até que, em 2012, veio a turma do mercado. “São todos executivos bem sucedidos”, diziam uns. “Alguns trabalharam em bancos”, afirmavam outros. “Um dos caras simplesmente negociou a dívida externa do Brasil”, dizia uma matéria num site qualquer. Tinha ex-diretor da Petrobras, presidente da SKY e vários nomes ligados ao então queridinho dos liberais brasileiros, o Eike Batista. Lembram dele? O grupo formou a chamada “Chapa Azul” que era a cor que almejávamos ver nas contas do clube. Para coroar, ainda ganharam o apoio de Zico, ídolo maior do clube que havia sido humilhado pela então presidente Patrícia Amorim. Ou seja, era o enredo perfeito, quase um roteiro hollywoodiano. Além da redenção, o troco, a vingança perfeita.

Deu certo. O grupo tomou posse em 2013 e em 6 anos, o novo perfil da diretoria elevou o patamar financeiro do Flamengo, alçando-o a um dos mais ricos da América do Sul. Logo, o clube que sempre foi razão de orgulho pelos feitos dentro das quatro linhas, passou a nos dar alegrias fora dele. Surgiram categorias como os “torcedores de planilha” ou “torcedores de dirigentes”, apontados pelo jornalista Mauro Cézar Pereira. Não obstante o comentarista tenha razão, é preciso dar um desconto em razão dos anos de autoestima reduzida em função da insolvência aparentemente incontornável. A defesa intransigente das ações realizadas pelos novos diretores continham um misto de gratidão pela nova condição e medo de retornar aos dias de dificuldades. O Flamengo Rico é uma realização terceirizada de todos nós. Ainda que continuemos fudidos, projetamos nossas realizações no clube objeto de nosso amor. Claro que isso leva a situações um tanto quanto esdrúxulas como celebrar com alegria genuína a emissão de uma Certidão Negativa de Débitos. Ou ainda se emocionar quando o então mandatário dizia em entrevistas que “o Flamengo tem o dever moral de pagar seus impostos para dar exemplo de correção à nossa torcida.” OK, confesso, é incomum comportar-se assim, mas se analisarmos o contexto dos anos que passamos devendo na praça, é compreensível. Freud ri de nosso ridículo.

O ano de 2019 começou com um novo presidente oriundo do mesmo grupo político que toma conta do clube há 6 anos. Além de vultosas contratações que vêm ocorrendo desde 2015, o incremento na infraestrutura é de saltar aos olhos. Um Centro de Treinamento construído nos moldes europeus e um alto investimento nas categorias inferiores fizeram o time colecionar títulos na base e conseguir vendas milionárias de jogadores formados em casa. Até nisso, melhoramos: antes, éramos péssimos vendedores. A temporada prometia. Muito.

Até que aconteceu um incêndio num contêiner dentro do CT, matando 10 adolescentes sob tutela do clube. Foi a maior tragédia da história do Flamengo e exigiu que o clube tomasse providências imediatas, demonstrando que é grande não apenas na história ou nas finanças, mas também na humanidade. Um acontecimento terrível que, por mais que tenha sido acidental, poderia ter sido evitado se o clube tivesse evitado riscos como o de deixar pessoas dormirem em contêineres. Agora, depois do ocorrido, parece básico.

A reação imediata foi a comoção generalizada e as primeiras medidas a serem tomadas seriam emergenciais: liberação dos corpos e sepultamentos dos meninos. Na mídia, víamos homenagens, tributos, histórias, matérias emocionantes e alguns questionamentos que começavam a surgir. De repente, começou a surgir todo um subterrâneo de ações que não chegavam ao conhecimento público: multas atrasadas, estruturas sem alvarás, construções não autorizadas. O clube que se organizara mostrava que o tinha feito à base de muito “jeitinho”. Porém, com o passar dos dias, era preciso agir com justiça e bom senso para tentar indenizar a perda irreparável que sofreram as famílias dos falecidos. E é aí que os nossos homens do mercado derrapam.

O mercado, como se sabe, gosta de números, mas não é muito afeito a pessoas. O Flamengo recebeu uma fatura do Ministério Público e da Defensoria Pública que traria amparo financeiro para todas as 10 famílias pelo resto de suas vidas, atitude correta, pois junto com os jovens morreu a esperança de vidas melhores para todos. O valor é alto: R$ 57 milhões, mas não seria pago de uma vez. Grande parte seria na forma de salários parcelados pelos próximos 30 anos. Além disso, sabe-se que o valor é 10 vezes menor que a projeção de receita do clube para 2019. Os dirigentes não aceitaram e tentam agora barganhar, apresentando contrapropostas ridiculamente menores. Também têm demonstrado insensibilidade e desdém com os pais das vítimas e a sociedade ao abandonarem entrevistas e reuniões antes do final.

Atitudes como estas apequenam a instituição e dão mostras que a mesquinharia dos que comandam os destinos do nosso clube de coração parece desconhecer fronteiras. Compreendemos o zelo que eles têm pelos limites prudenciais da responsabilidade, mas há uma linha muito tênue entre a ambição e a ganância que não deveria ser cruzada quando vidas perdidas entram na equação. As ações recentes do presidente do Flamengo e de seus vice-presidentes envergonham a todos nós, pois é na torcida que recairá a pecha de irresponsabilidade e desleixo demonstrada, resultando diretamente na morte dos jovens.

A frieza com que vem tratando a questão dá a entender que os diretores simplesmente não entenderam a dimensão do ocorrido. Parecem desprovidos de qualquer empatia, como se não tivessem eles mesmos entes queridos cujas perdas causariam sofrimento, como se os Garotos do Ninho, crias do clube, pudessem ser dispostos numa tabela de “restos a pagar”. O descaso e as atitudes calculistas desprovidas de solidariedade têm nos embaraçado muito mais do que qualquer traço da temeridade insolvente do nosso passado falido. Dói ver o clube que amamos agir assim, pois não há justiça e correção em negligenciar a dor alheia.

E mais, começa-se a perceber, pelos movimentos e declarações feitas nos últimos dias que o discurso adotado junto à opinião pública é o da perseguição, tentando fazer prevalecer a narrativa de que o clube vem sendo “injustiçado pela mídia”. A ideia, ao que parece, é nos fazer acreditar nesta versão e contribuir com a defesa inquestionável da integridade moral da diretoria, além de sustentar que o Flamengo vem fazendo tudo ao seu alcance para reparar as perdas. Não vem.

Se não caírem na real rapidamente, estes homens de ternos bem cortados estarão escrevendo um dos capítulos mais tristes da história do Flamengo. Um capítulo que já vitimou 10 meninos e que ameaça acabar com suas reputações. Se não cumprirem com as demandas das autoridades e entrarem em acordo com os responsáveis pelos rapazes nos termos sugeridos pela justiça (ou sequer próximos), o consenso de que o Flamengo é duplamente culpado prevalecerá.  Coros nada abonadores dirigidos ao clube começarão a ecoar, referindo-se à morte e até a um suposto assassinato. E acredito que os dirigentes serão nominalmente acusados por sua própria torcida. Porque de caloteiros até suportamos ser chamados, mas de criminosos não.

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