O homo Deus, de joelhos, precisará repensar sua ação sobre planeta
Natal, RN 19 de abr 2024

O homo Deus, de joelhos, precisará repensar sua ação sobre planeta

3 de maio de 2020
O homo Deus, de joelhos, precisará repensar sua ação sobre planeta

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Por Robério Paulino [1]

2020: o ano em que o mundo parou 

O mundo vive um cataclismo, um choque monumental, um momento sem precedentes na história humana. Apesar de a COVID-19 não ter matado até agora mais que as grandes guerras e outras pandemias, nunca tantos foram afetados por um evento global simultaneamente, em tão curto espaço de tempo, em tantos lugares do planeta. Milhões foram infectados pelo vírus em menos de 3 meses em mais de 180 países, com dezenas de milhares de mortos até agora. O medo paralisa grande parte das atividades humanas. As TVs e redes sociais mostram todo o tempo hospitais colapsados mesmo em países centrais, com filas de ambulâncias. Países constroem hospitais de campanha às pressas, se preparando para o pior, como em tempos de guerra.

Cenas chocantes de enterros de indigentes em valas comuns nos cemitérios em algumas cidades ou de mortos abandonados nas ruas no Equador, vistas por todo o mundo, lembram tempos de guerra e horrorizam a todos. Bilhões estão presos dentro de suas casas em quarentena, pela exigência de isolamento social, enquanto não existe qualquer vacina contra vírus tão contagiante. Famílias estão separadas, sem poder ter contato com seus parentes ou até mesmo enterrar seus mortos. Problemas de abastecimento podem agravar a situação nos próximos meses.

Os centros e avenidas de grandes cidades mundiais, com seus monumentos, antes lotados de turistas, de repente estão quase desertos; os metrôs das maiores metrópoles aparecem quase vazios, mesmo em dias de semana. Nem na II GM foi assim, já que, durante aquele conflito, as pessoas se protegiam dos bombardeios nos subterrâneos, mas logo as cidades voltavam ao seu ritmo frenético. Grandes aeroportos estão parados e milhares de aviões no chão.

Parte considerável dos navios estão ancorados nos portos; o comércio internacional cairá em porcentagem ainda não previsível com segurança. Milhões de empresas estão paradas em todo o mundo e já demitiram dezenas de milhões de trabalhadores, o que prenuncia uma recessão e uma crise social de magnitude ainda não calculável, que pode vir a ser talvez a maior depois de 1929. Tempos sombrios.

Uma mudança tão radical em tão pouco tempo era inimaginável até poucos meses, uma ruptura que entrará para a História e que será objeto de muita discussão e estudos. No futuro, professores dispensarão muitas aulas para explicar a pandemia de 2020. Esta série de crônicas pretende apresentar ideias sobre essa crise em andamento, ainda que saibamos que só poderemos entendê-la mais profundamente quando tomarmos distância no tempo. Conseguirá a humanidade repensar seu acionar destrutivo sobre o planeta, como seria desejável?

O homo-Deus de joelhos perante um minúsculo vírus

Nossa inteligência superior, nossa ciência, nossa avançada tecnologia, nossas máquinas, nossos Estados e sistemas políticos, nossos arsenais e armas de destruição em massa, capazes de arrasar cidades ou países inteiros em minutos, nossa medicina, nossas vacinas e antibióticos, nosso domínio quase total sobre todo o território, nos tornaram senhores absolutos do planeta, subjugando todos os demais animais, a ponto de nos considerarmos invencíveis. Mas eis que de repente, o animal que passou a ser considerar um deus, como cunhou Yuval Noah Harari (2015, 2016), é colocado de joelhos por um ser minúsculo, invisível, uma das formas de vida mais primitivas do planeta, sem qualquer inteligência complexa, mas de uma potência mortal ainda desconhecida pelos humanos, pelo menos desde a Gripe Espanhola, que matou dezenas de milhões ao fim da Primeira Guerra Mundial.

Repensar todo o acionar humano pelo planeta

Nunca mais a humanidade será a mesma depois dessa crise; nunca se sai de uma catástrofe com a mesma mentalidade, como apontou recentemente Lilia Schwarcz (2020). Essa tragédia talvez seja uma grande oportunidade de levar a humanidade a refletir se temos o direito de fazer o que estamos fazendo com nossa casa comum, nosso habitat, de exterminar anualmente centenas de espécies animais e vegetais que habitam o planeta há milhares de anos conosco, de exaurir, contaminar, poluir o planeta para nossa satisfação exclusiva, comprometendo inclusive o futuro das futuras gerações humanas.

Obviamente, essa crise questiona o próprio sistema capitalista, pela forma frenética e irracional com que revolve e explora os ambientes do mundo. Põe em xeque também sua forma mais brutal, o neoliberalismo. Os países onde a face social do Estado foi reduzida ao mínimo e inexiste qualquer sistema de saúde pública, como por exemplo os EUA, têm tido o maior número de mortos. Analisaremos numa próxima crônica como essa crise tem o potencial de enfraquecer o ímpeto neoliberal, a depender da reação das populações, dos movimentos sociais e da compreensão sobre seu real significado por parte da inteligência do mundo. Mas não podemos culpar apenas o capitalismo, uma forma específica de organização econômica e social, por toda essa crise. Talvez esse choque tenha muito a nos ensinar sobre a necessidade de repensar o próprio acionar humano sobre o planeta, enquanto espécie.

Nossa agricultura em larga escala, nossa mineração, nossas estradas, extinguem e empurram para espaços minúsculos outros animais. Na verdade, o ser humano tem sido o verdadeiro vírus, absolutamente mortal, brutal, para a maioria das espécies animais e vegetais, a quem temos tirado o direito de viver e se reproduzir. Grandes animais desapareceram de repente do continente americano por volta de 20.000 anos atrás, coincidindo com a nossa chegada ao continente a partir do Estreito de Bering, entre a Ásia e o Alasca. Suspeita-se que pela mão do sapiens (DIAMOND, 2018). Enquanto nossos rebanhos crescem a bilhões, extinguimos ou reduzimos a poucos sobreviventes em reservas espécies de animais que não nos servem de alimento, como leões, elefantes, rinocerontes, enquanto continuamos a desmatar e destruir o espaço vital de muitos outros, para ampliar nossa agricultura, como na Amazônia.

Após confiná-los, industrializamos a morte diária de outros animais que nos servem de comida, como bovinos, caprinos e aves, mortos às centenas de milhões diariamente para produzir nossos bifes, nossos hamburgueres, nosso bacon. Subtraímos o leite destinado aos bezerros que choram, para produzir nossos finos queijos, nosso iogurte. A população mundial só pôde chegar a quase 8 bilhões quitando espaço vital a milhões de animais e plantas.

Outro padrão civilizatório

Alguns analistas apontam que essa pandemia seria de certa forma uma vingança da Natureza contra a ação humana destruidora sobre o planeta, o que é uma explicação questionável, pois a humanidade sempre esteve sujeita a ação de outras pestes no passado. O que podemos sim aprender dessa crise é que, apesar de todo nosso conhecimento, nosso desenvolvimento tecnológico, não somos deuses e sim um animal como outro qualquer do planeta, vulnerável, que precisa aprender a conviver no mundo sem destruir as demais formas de vida. Se temos direito sim de exterminar os vírus, não o temos em relação aos demais seres viventes.

Três das principais religiões monoteístas do mundo, o judaísmo, o cristianismo e o islamismo, colocaram o ser humano como o centro de toda existência no planeta, como um animal divino, filho de deuses, o que nos leva a achar que temos direito de explorar todos os recursos naturais para a satisfação exclusiva de nossa espécie, mesmo ao custo da extinção das demais espécies, do desequilíbrio total do meio ambiente e da destruição do futuro de nossas futuras gerações, como se antevê hoje. A Bíblia disse: “crescei e multiplicai-vos”, o que tem que ser repensado. Precisamos discutir mesmo uma marcha a ré no tamanho da população mundial. A volta de animais silvestres às ruas de nossas cidades quase desertas nessa pandemia talvez seja um convite a nos fazer refletir sobre como seria o planeta sem nossa presença ou com o ser humano respeitando as demais formas de vida.

O número de mortes nessa crise nos assusta e nenhuma delas se justifica, ao contrário do que defendem os negacionistas. Todas as medidas de contenção, como o isolamento social, estão justificadas, para poupar cada vida, pois todas importam. Felizmente, essa pandemia não vai destruir a civilização humana. Ao longo de milhares de anos, passando por tantas outras pestes, nosso sistema imunológico evoluiu, aprendeu, e preparou a maioria de nós para nos defendermos mesmo de um vírus potente como a COVID-19. Os números de recuperados confirmam isso. Apesar de todo horror que causa, em termos percentuais essa pandemia provavelmente vai matar muito menos que a Gripe Espanhola, que levou em torno de 50 milhões de vidas, quase 1/20 da população da época.

Essa crise e todo choque que vêm gerando podem ser, no entanto, um alerta, uma grande oportunidade de repensarmos nosso modo de vida, nossos valores, nosso acionar sobre o planeta. Refletirmos sobre se tudo que produzimos e consumimos é realmente necessário, útil, ou dispensável e supérfluo. Uma oportunidade de reavaliar todo o sistema econômico atual, hoje baseado na busca do lucro a qualquer preço, na ganância, no individualismo, num consumismo compulsivo e insustentável. Pode ser uma grande chance de pensarmos se temos o direito de destruir todo meio ambiente para nossa satisfação imediata e exclusiva, comprometendo a continuidade das demais formas de vida que nos acompanham no planeta há milhares de anos e o futuro de nossa própria civilização.

Quem sabe esse minúsculo vírus, que coloca de joelhos o de repente frágil Homo Deus, tenha muito a nos ensinar, levando-nos a começar a construir um outro padrão civilizatório, alicerçado em valores como coletivismo, igualdade, solidariedade, simplicidade, respeito às diferenças entre nós e às demais formas de vida do planeta e sustentabilidade. Os exemplos de ajuda humanitária entre países nessa crise, as muitas ações de solidariedade que vemos, as cenas de vizinhos que nunca se conheceram antes, de repente cantando juntos, consternados e solidários nas janelas de prédios na Itália durante o isolamento, nos enchem de otimismo quanto ao lado bom do ser humano. Talvez sejam uma sinalização sobre o outro caminho a seguir, uma luz no fim do túnel, um sopro de esperança dentro de um mundo tão conturbado e ameaçador.

Natal, 29/04/2020

DIAMOND, Jared. Armas, germes e aço: os destinos das sociedades humanas. Rio de Janeiro: Record, 2018.
HARARI, Yuval Noah. Sapiens: Uma Breve História da Humanidade. Porto Alegre: L&PM, 2015.
______ HOMO-DEUS: Uma breve história do amanhã. Brasil: Companhia das Letras, 2016.
SCHWARCZ, Lilia. 100 dias que mudaram o mundo. UOL/Universa, 09/abr/2020. Disponível em: https://www.uol.com.br/universa/reportagens-especiais/coronavirus-100-dias-que-mudaram-o-mundo/#100-dias-que-mudaram-o-mundo

[1] Professor da UFRN, no Departamento de Políticas Públicas, Natal.

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