O Liberal Conservador
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3 de julho de 2018
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Os embates político-ideológicos provocados pela geleia geral das intensas e histéricas manifestações de 2013 têm tomado conta da sociedade. Todos os ambientes reais ou virtuais têm servido de palco para os mais inesperados, dantescos e escatológicos espetáculos. O Brasil virou uma enorme bienal de performances improvisadas concebidas sem a menor elaboração, ensaio e desprovidas de qualquer conceito. A ordem do dia é falar incessantemente as mais tresloucadas asneiras sem dar a menor pelota para ingredientes ultrapassados na receita que define a etiqueta da retórica atual: lógica, racionalidade, argumentação minimamente razoável. É como se as pessoas botassem pra fora todo o sentimento represado e, em estado de transe, abrissem as comportas do inconsciente e jorrassem sobre nós toda uma infinidade de preconceitos descabidos e valores arcaicos. Este comportamento lembra bastante as máximas de poetas transgressores que repetem axiomas livremente adaptados para este texto: “política é para ser sentida e não para fazer sentido, pois quem faz sentido é soldado”. No caso dos que clamam por intervenção militar, aliás, as possíveis interpretações desta última oração representam um perigo mais real e imediato do que poderíamos supor até pouco tempo.

A verdade é que a convulsão social de 5 anos atrás deixou sequelas como se o corpo da sociedade tivesse sofrido um aneurisma e estejamos agora no lento processo de recuperação desta fatalidade clínica. As consequências, inclusive, têm sido bastante sentidas, como uma certa confusão mental que fez com que a completa anarquia descrita no parágrafo inicial desta coluna migrasse para o campo partidário e criasse um impasse político tão extremo que muitos têm defendido que o lema de inspiração positivista estampado no pavilhão nacional que declara “ordem e progresso” possa ser substituído sem prejuízo à verdade por “dedo no cu e gritaria”.

Dentre as aberrações produzidas por este enorme laboratório a céu aberto em que se tornou o Brasil está o cidadão médio (que no caso, pode ser sinônimo de medíocre) que se auto define como “liberal na economia e conservador nos costumes”, numa tentativa de legitimar a homofobia, misoginia e racismo aderentes ao seu discurso e defender a liberdade de poder ser babaca em público.

O liberalismo foi identificado e popularizado pelo teórico Adam Smith em seu livro “A riqueza das nações” (1776). Na obra, o autor defendeu que quando um empresário tem mais lucro do que precisa para sustentar sua família, ele reinveste o lucro excedente na própria empresa, aumentando a produção e a oferta de emprego. Em função disto, o aumento do lucro das empresas deve ser considerado como a base para o aumento da prosperidade coletiva.

O comportamento do liberal típico apresenta alguns padrões em qualquer ambiente que habite. Defende a livre iniciativa e que a busca pelos próprios interesses é a melhor maneira de criar uma sociedade próspera. Acredita na competição aberta e sem maiores regulações, além de que uma força superior chamada “mercado” tem o poder de regular a sociedade da melhor maneira possível para todos. É contrário às intervenções do Estado, defendendo que este não se intrometa na vida de seus cidadãos, permitindo que o bolo econômico cresça ao bel prazer do mercado, beneficiando assim a vida de toda a sociedade.

Todos estes aspectos pertinentes ao liberal padrão já eram de domínio público (ou privado, se julgarem mais adequado). Até porque o liberalismo descrito por Smith faz sentido e se baseia em profundos estudos, pesquisas e observações de casos reais. Ou seja: tem forte embasamento científico. No entanto, não pode nem deve ser utilizado como uma Bíblia a nos conduzir por um caminho de luz numa neo-teocracia dogmática. O liberalismo não é uma verdade absoluta a descrever todos os casos existentes nem pode reger sozinho a maneira como deve agir a sociedade. Sobretudo num país pobre como o nosso, em que as desigualdades gritam à nossa porta, é preciso buscar o equilíbrio entre a prosperidade econômica e os avanços sociais.

Nesse contexto, o surgimento do “Liberal Conservador” é algo mais difícil de explicar que batom na cueca e a convocação do Taisson. Porque quando um indivíduo que se diz liberal pede que haja regras mais rígidas contra minorias sociais ou revogação de direitos conquistados por grupos como negros, gays e mulheres, ele está pedindo exatamente o que é combatido pela teoria que diz seguir: uma maior regulação e interferência direta do estado na vida de indivíduos autônomos.

Os defensores desta corrente de pensamento contraditório tentam legitimar seu discurso alegando que combatem privilégios que têm tornado a sociedade desigual em favor de, ATENÇÃO: negros, LGBTQs, mulheres, indígenas, nordestinos e outras minorias. Eles rogam por uma suposta isonomia estatal, mas não conseguem explicar correntemente onde está o privilégio de grupos que apenas lutam para ter acesso a direitos em condições análogas a de outros extratos sociais e ser tratados com o mesmo nível de respeito que os grupos mais privilegiados.

A situação chega a ganhar contornos ainda mais absurdos quando o liberal conservador insere ainda o “vitimismo” aos seus clichês, dizendo-se perseguido por uma conspiração invisível formada por todas as minorias e, como mecanismo de autodefesa, tenta legitimar seu preconceito papagaiando expressões como “Ideologia de gênero” para se referir ao feminismo, “ditadura gay” para diminuir a militância LGBTQ, “Escola Sem Partido” para empreender uma perseguição inclemente a professores, “Racismo Reverso” para acusar negros de serem algozes de algo de que são vítimas (eu sei, ficou confusa a construção, mas é porque é confuso mesmo), “politicamente correto” para se referir a qualquer um que identifique algum traço de preconceito em seu comportamento e, claro, o já clássico “comunista” dirigido a qualquer um com o mínimo de preocupação social. Chegam ao cúmulo de exigir proibições a exposições de arte e peças teatrais em nome da “moral e dos bons costumes”. Ou seja, são liberais meio falsificados estes nossos.

Até na economia, tema que deveriam dominar com maior desenvoltura, os adeptos deste grupo derrapam feio. Defendem o Estado mínimo, desde que os cortes sejam feitos em programas sociais e subsídios sejam dados a grandes empresas e indústrias. São a favor das privatizações porque as estatais geram prejuízos de milhões ao país, mas defendem a entrega de 1 trilhão na forma de isenção de impostos a uma multinacional estrangeira privada que serão perdidos para sempre.

A existência deste fenômeno comportamental pode ser mais facilmente compreendido pela profusão de informações via redes sociais, bem como a mudança de fluxo da comunicação para meios como Facebook, WhatsApp e Twitter. O conteúdo viaja mais rápido e esta velocidade prejudica a análise do que se recebe. Sem pensar direito no que se lê, vê e ouve, o receptor simplesmente passa adiante sem questionar a veracidade, procedência ou lógica. É esse o ambiente perfeito para que surjam e se proliferem bizarrices como o cidadão médio “liberal na economia e conservador nos costumes”.

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