O Mercado
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8 de abril de 2020
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Eu nasci numa aldeia de poucos hábitos civilizatórios, numa casinha de taipa no meio do mato. Vim conhecer os ditames das relações sociais através do “mercado” onde meus pais tinham uma banca de vender comida feita para os feirantes. Mas minha primeira experiência, mesmo, foi na venda de seu Joaquim Lopes. Cinco da manhã lá estavam meu pai e amigos para uma “bicada de zinebra do gato” e tira-gosto com papel de embrulho. Diziam que espantava mau olhado. Enquanto isso, eu comia um pão doce com cocada de leite ou uma soda preta. A esposa do seu Joaquim, com a vista já meio curta, era quem regulava a bolsa (“mercado”) pra evitar “inflação” e possíveis “bolhas” (nota de duas cabeças). Aqui e ali aparecia uma novidade que deixava seu Joaquim nervoso:

- Maria! Isso é “destões” ou dois “minréis”?

- Vixe! É de duas cabeças, Joaquim!

E lá se vai o desmantelo no mercado (“bolsa”)!

Depois veio a bodega de seu Reinaldo. Ah, aí sim! Muito sortimento: feijão, sabão, querosene, espoleta, cachete, parafuso de cabo de serrote (Jessie Quirino) e a caderneta (“letra de câmbio ao portador”). Essa versão era interessante porque não precisava de dinheiro. Só crédito. E eu acreditava tanto que troquei a nota de duas cabeças pela caderneta. E haja “inflação”! Nunca meu pai conseguia zerar o “débito” pra sair com algum “crédito”. Mais palavras novas no “mercado” e a bodega de seu Reinaldo de vento em popa! Meu pai desconfiado inventou mais uma caderneta: a que ficava na bodega e uma em casa no bolso dele. Foi aí que nasceu a “poupança”.

Mais tarde, já na adolescência, veio o “Mercado de Caicó” e a feira livre. Tinha de tudo! Literalmente a primeira versão de um grande Shopping. Era maravilhoso um dia de feira com a gritaria propagandeando o melhor e mais barato, o vendedor de pedra de chifre de “viado gaieiro” pra mordida de cobra, banha do peixe boi pra espinhela caída e todo tipo de dor, pomada benzida pra pereba e mau da ferida, muita prosa e a literatura de cordel no gogó dos cantadores contando histórias de cabra valente, lobisomem. Eu ia pra banca de meus pais e, como já dominava as 4 operações de conta, ficava no caixa. Foi aí que pensei em ser bancário. Mas o meu pai tinha uma história de dizer, e minha mãe concordava, “quem não vive pra servir não serve para viver”. Sempre que passava algum pedinte aparecia um tal de déficit (nunca gostei dessa palavra).

De repente, acordo hoje aos meus 65 anos – plagiando Duvivier: depois da ditadura, da malária, do confisco da minha poupança, da dengue, do Cunha e de um 7 a 1, e minha filósofa de plantão (Marilena Chauí) dizendo que o meu mercado, de tantas alegrias, é “dotado de onisciência e onipotência”, seu estado de espírito repercute nas políticas do planeta e na vida cotidiana dos cidadãos, quando ele fica nervoso! Ou seja, virou uma coisa viva que come, bebe, rouba, protege rico e mata pobre, faz de tudo e se a gente não for fiel e subserviente a ele o bicho acaba com a nossa raça e é capaz de engolir o planeta. PQP!

Então, eu pensei: será que esse coronavírus que tá azucrinando o mundo veio pra... não posso acreditar nisso! Homem, pra não perder meu juízo e enterrar minhas memórias, eu vou fazer como minha querida amiga Fatinha de Valdomiro:

- “Vão tudo pá baixa da éeegua!”

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