O mundo e os moinhos dos sambas de Zorro
Natal, RN 25 de abr 2024

O mundo e os moinhos dos sambas de Zorro

16 de junho de 2019
O mundo e os moinhos dos sambas de Zorro

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Quando Angenor de Oliveira foi “achado” lavando carros no bairro de Ipanema pelo jornalista Sérgio Porto, nascia daquele encontro o mito Cartola. Àquela altura, o compositor da Mangueira já tinha feito o Rio de Janeiro de gato, sapato e contava uma obra tão considerável quanto escondida do público. Os holofotes da mídia só apontaram para a poesia e o lirismo de Cartola a partir de 1972. Dois anos mais tarde, já aos 66 anos de idade, o lavador de carros, mestre de obras nas horas vagas de samba e autor de clássicos eternizados na história gravaria o primeiro LP. A partir daí, foram mais três discos e um Cartola consolidado em definitivo no panteão sagrado e profano da música brasileira.

A mais de mil quilômetros daquele Rio de Janeiro, um pouco antes do encontro mítico entre o compositor de O Mundo é um Moinho e Sérgio Porto, um moleque de 15 anos de idade estraçalhava os adversários nas disputas de bola de gude no abençoado chão de terra batida do bairro das Rocas, subúrbio da zona leste de Natal (RN). Numa tarde especial, após o jovem Heriberto conquistar todas as bilocas e vencer a turma toda, um dos garotos mais empolgados com a sequência vitoriosa gritou eufórico que o papa-bola-de-gude daquela tarde tinha a pontaria do Zorro, justiceiro mexicano de capa preta e venda nos olhos que encantava mocinhas e adolescentes nos anos 1970.

A partir dali, mesmo sem saber, Heriberto Pedro da Silva perderia a verdadeira identidade e passaria a ser conhecido e reconhecido como Zorro. Ninguém lembra mais da história das bilocas, mas o apelido ficou cravado na memória, tal qual o Z do personagem dos filmes de faroeste.

Atualmente, aos 65 anos de idade, e com quase dois metros de altura, Zorro continua sendo referência no bairro e na cidade onde nasceu. Nada a ver com as bolas de gude da juventude. As bilocas de ontem são os sambas de hoje. Compositor e ritmista, Zorro é um dos principais autores e defensores do samba autoral de Natal.

Boa parte dessa cultura vem das Rocas, terreiro encantado considerado uma espécie de berço do samba natalense de onde nasceram grandes e autênticos mestres do gênero, a exemplo de Roberto Lucarino, Raimundo Melé, Aluízio Pereira e Agarci dos Santos.

É também nas Rocas onde nascem as primeiras escolas de samba, influência dos marinheiros que vinham do Rio de Janeiro e chegavam a Natal pelo porto, localizado nas proximidades do bairro.

Zorro é assíduo das rodas de samba da Cidade Alta (foto: Gustavo Silveira Fernandes)

Embora não tenha ideia de quantas letras já escreveu para as escolas de samba nas quais desfilou ou para as rodas de samba de que participou, Zorro já ouviu amigos e até a imprensa publicar que sua obra já teria perto de 200 composições:

- Eu não sei se chega a tanto porque tem muita coisa que eu não escrevi, ficou só na cachola. Às vezes eu lembro, outras vezes não. O primeiro samba que eu fiz, por exemplo, entreguei numa fita-cassete para Debinha (sambista também das Rocas), que passou para outra pessoa. A fita sumiu e esse cara morreu um dia desses. Nem do nome da música eu lembro. Só sei que era em homenagem a uma preta da Em cima da hora (escola de samba das Rocas)”, diz um tanto quanto tímido.

Parte da obra de Zorro foi lançada no final de 2018 no disco “Filme Eterno”, com 19 canções autorais que passeiam pela trajetória do compositor, a partir dos anos 1990. É o primeiro registro solo de Zorro, custa R$ 10 e pode ser comprado com o próprio compositor ou no sebo Balalaika (vulgo sebo de Ramos, na rua Vigário Bartolomeu, Centro)

O disco demorou quase três anos para ficar pronto, foi produzido pelos arranjadores Bethoveen e Jubileu Filho, da empresa Beiju Produções, e também traz quatro parcerias recentes com Carlos Brito, Luiz Antônio, Rico e Valéria Oliveira.

O nome do disco é uma homenagem a Luiz Carlos da Vila, uma das três grandes referências de Zorro no chamado mundo do samba. Os outros dois são Candeia e, claro, Cartola. Em parceria com Arlindo Cruz, o da Vila escreveu, mas nunca gravou, o samba “Eterno filme”, canção que teve o nome invertido e entrou como homenagem no disco.

Autor de quase 200 sambas, Zorro gravou primeiro disco da carreira aos 65 anos de idade (Foto: Franklin Levy Carvalho)

Zorro explica que o carinho pelo Luiz Carlos de Vila Isabel é diferente da reverência por Candeia, cuja relação é mais espiritual. Vira e mexe, ele sente a presença do ídolo, seja no palco, como ocorreu no lançamento do disco em outubro de 2018, ou em situações corriqueiras do dia-a-dia.

Já com Cartola, o buraco é mais embaixo. Guardadas as proporções e as diferenças de estilo na obra de cada um, Zorro e Cartola têm semelhanças. Enquanto o carioca Angenor de Oliveira gravou o primeiro LP aos 66 anos de idade, em 1974, o natalense Heriberto Pedro conseguiu lançar o primeiro trabalho somente aos 65 anos.

Antes do registro fonográfico, porém, tanto o compositor de As rosas não falam como Zorro ganharam a vida como mestres de obra, uma atividade tão digna como o samba de papel passado:

- Eu nunca contei abertamente para ninguém sobre essa relação que vejo entre eu e o Cartola porque senão podem achar que eu estou me comparando a ele. Não é isso, pelo amor de Deus ! Temos estilos bem diferentes, mas temos essas semelhanças. Eu por exemplo nunca tinha cuidado de jardim, mas de uns tempos para cá eu passei a cuidar. E era uma coisa que o Cartola gostava muito”, diz sobre o dono dos versos "simplesmente as rosas exalam / um perfume que roubam de ti..."

Predestinado

Zorro conta que não faz sambas autobiográficos. E vez por outra, quando coloca uma história na cabeça com começo, meio e fim, os versos levam a ideia inicial, embora o resultado nem sempre saia como o planejado no início:

- Tem samba que faço para ser alegre, bem-humorado, mas acaba sério. Os versos levam a gente para onde eles querem, e não para onde a gente acha que eles devem ir”, reflete.

Denise Moreira não costuma acreditar quando Zorro explica que os versos de amor que escreve não são autobiográficos

Apesar de jurar que as letras dos sambas que compõe são pura ficção, não tem quem faça a cantora Denise Moreira, companheira de Zorro, acreditar. Ele segura a versão e bate o pé:

- Minha atual esposa acha que eu faço para alguém, mas a espiritualidade age muito em cima de mim. Não faço samba pra mulher tal, não tenho essa fixação. Alguns sambas, como o Morro da Saudade, é um desejo de estar com alguém numa roda de samba e vai desenrolando. Mas não é especificamente sobre mim ou sobre alguém. Não sou melhor nem pior do que ninguém, mas eu digo que sou o mais carioca dos compositores de Natal”, destaca.

A faixa 8 do disco traz o samba Predestinado, samba mais antigo registrado por Zorro no Cd. A música demorou 10 anos para ser concluída e fala de um garoto menor abandonado pelos pais, então separados. Embora escrita há tanto tempo, a letra parece um recado de Zorro para o Brasil atual:

- Esse samba demorou 10 anos para terminar, foram anos e anos com a primeira parte pronta e não tinha jeito da segunda sair. Quando veio, saiu rápido, mas demorou. E Predestinado fala sobre o menor abandonado filho de pai separado, pobre, que tem o lado social de enveredar pelo crime, mas vê que não é o caminho. Entre um revólver e um livro, ele prefere um livro.

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