O nascer da violência em O Coringa: breve ensaio criminológico
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O nascer da violência em O Coringa: breve ensaio criminológico

17 de outubro de 2019
O nascer da violência em O Coringa: breve ensaio criminológico

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Por Lucas Arieh

“Os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem segundo a sua livre vontade; não a fazem sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX, Karl. O dezoito de Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo, p. 35).

Este texto não é uma resenha sobre O Coringa, embora, naturalmente, pontos centrais do filme serão abordados (e este é um aviso de spoiler!).

Na verdade, pretendo analisar o filme à luz de uma questão criminológica que ultrapassa a esfera acadêmica, pautando discussões populares das mais acaloradas: falo das tentativas de explicar a origem da violência.

Entre as intuições mais comuns, duas se destacam. Optarei por chamá-las, reduzindo o rigor acadêmico, de tese psicológica e de tese social. Na criminologia, ressalvadas as inúmeros outras correntes que existem[1], estas se associam, respectivamente, à etiologia (criminologia “de médicos e advogados”) e à criminologia crítica (ligada às explicações sociológicas)[2].

Se uma exclui a outra, e qual delas possui o maior potencial explanatório, é o que tentarei verificar. Advirto: aqui, partirei da perspectiva da criminologia radical, de viés marxista, já que a criminologia crítica admite formas liberais[3]. Isso significa, numa visão simplificada, que se analisará o contexto de luta de classes e de produção e reprodução da vida como fonte para entender por que e de que modo o poder e a violência (institucional ou direta) se manifestam[4].

Para tanto, está na hora de visitarmos Gotham City em 1981[5]. O filme se passa no auge do modelo Reaganomics de austeridade fiscal e de aberto confronto contra sindicatos. Mas Gotham parece ainda mais medonha; há um quê de miséria moral e descrença profunda no estilo de vida americano. O homem comum devora a si mesmo impiedosamente.

Logo de cara, nós, telespectadores, adentramos numa cidade cinza e carcomida, tudo amplificado pela greve dos trabalhadores do sistema de coleta de lixo. Os becos escuros e úmidos concorrem com um sem número de sacos pretos abarrotados, que se empilham ilimitadamente. Toda a imersiva experiência serve ao propósito de nos incomodar, de nos perturbar, de nos colocar diretamente num mundo que se anuncia vil, cruento e destrutivo.

É no seio deste ambiente que surge o personagem principal, Arthur Fleck, um sujeito triste, introspectivo, cujo sonho é ser comediante. À sua compulsão por cigarros se soma seu estado psicótico; ele ostenta uma condição especial: ri freneticamente ao acaso. Arthur vive solitariamente com sua mãe, que, debilitada e desassistida (a não ser por ele), insiste que Thomas Wayne – um bilionário local que pretende se candidatar a prefeito sob a promessa de colocar ordem na casa – lhe ajudará por ter trabalhado para ele.

Mas Arthur sobrevive alugando seu corpo como palhaço, só importando, como todos os seus pares, na medida em que emprega sua força de trabalho a contento. Ele exerce as mais distintas funções: desde anunciar produtos até trabalhar num hospital de crianças com câncer.

Nesse cenário de solo arrasado moral, no qual reina o completo atomismo social, Arthur, que é um perfeito exemplar do andar de baixo da cadeia alimentar, sofre múltiplas violências: é assediado moralmente no ambiente de trabalho, inclusive por outros trabalhadores, e é, por vezes, brutalmente agredido.

Muito mais do que o crime, a palavra-chave para entender o criminoso que Arthur se tornaria está na violência: violência particular, contra sua condição psiquiátrica, da qual se aproveitam seus carrascos, mas, sobretudo, a violência estrutural, que se volta contra ele (e contra um insondável número de moradores de Gotham) na forma de abandono à própria sorte, à sorte, portanto, do que desejam os poderosos.

O seguinte cenário é relevante para chegarmos ao ponto crucial deste texto: Arthur está sentado na frente de uma assistente social e lhes circundam caixas-arquivo; é um ambiente lúgubre, mal iluminado (aliás, se bem reparei, todos os cenários reproduzem esse padrão). Ela, que aparentemente o recebe faz tempo e, ao que parece, tem como objetivo ajudar o Estado a neutralizar um louco – sempre um potencial criminoso –, insiste em perguntas rotineiras. Eis o estopim para Arthur!

O ponto de inflexão de sua jornada como alguém que engole friamente o pão amassado pelo diabo em pessoa é este momento. Arthur percebe algo que já sabia: está às voltas com uma forma de sociabilidade em que ninguém se importa com ninguém. Mais do que isso: inexistindo solidariedade de classe, a violência parte de todos que com ele compõem a volumosa classe explorada.

Ao momento de dar-se conta se segue a pá de cal: não haverá mais consultas com a assistente social nem serão custeados os sete medicamentos de que ele faz uso, pois as verbas públicas foram cortadas. Ela reforça; ninguém se importa com ele. Ou com ela.

Com efeito, o que se vê durante o filme é a escalada da violência como força-motriz: ora o importunando pelo medo, ora lhe fazendo notável por impor o medo. Da violência como invisibilizadora à violência como êxtase. Em Gotham, você precisa ser notado. Para o bem ou para o mal.

Retomemos, então, a proposta de questionamento que fiz no início: como explicar o Coringa, este personagem violento que acompanha o Batman há muito tempo? Essa resposta era apenas especulável antes deste filme. Sem saber como o indivíduo foi constituído, nos arriscamos apenas a palpites. Com o filme, no entanto, somos apresentados a uma condição psicológica profundamente delicada e a uma vida miserável.

A “criminologia de médicos e advogados” não demoraria a afirmar que o padrão de violência por ele reproduzido proviria unicamente de sua patologia psiquiátrica. Um olhar mais atento, contudo, nos permitirá historicizar esta condição.

Uma patologia é um fenômeno natural. Dentro de seus limites, não cabe ingerência humana. Está claro que ela influenciará em alguma medida o comportamento daquele que acomete. Disso não há como discordar.

Mas não nos esqueçamos de que estamos em Gotham – e uma patologia não é só uma patologia. Pertence à estrutura desta sociedade profundamente desigual uma gramática da violência: primeiro entre os membros das classes subalternas, que vivem a milhas de distância da classe dominante, não sendo possível a elas direcionar seu ódio. O ódio é um elemento que, não tendo vazão, transforma-se em guerra entre os explorados.

Mas, quando Fleck reage à agressão de homens da elite local, ele cela as duas condições: a doença mental desassistida por uma sociedade brutal, que desde a infância impiedosamente estraçalha o personagem principal, à barbárie estrutural.

Aqui, ele faz irromper entre as classes populares um ódio de classe que sempre recalcaram e dá início a uma incontida revolta popular, absolutamente desorganizada[6], escancarando, mesmo não intencionalmente, o conflito de classes que a violência como forma de sociabilização outrora manteve apenas entre os oprimidos.

Sintetizo, por fim, minha hipótese: a violência não pode ser compreendida sem o padrão de sociabilidade no qual existimos. Mesmo patologias “temíveis”, psicopatias, nada são descontextualizadas. É preciso entendermos a economia política dos nossos tempos para pensarmos na questão da violência.

Por isso, se é certo que não devemos louvar a figura do Coringa, também é verdade que não podemos evitar de compreendê-la. Somos nós, afinal de contas, os homens e mulheres responsáveis não pelo Coringa, mas pela Gotham onde vivemos. E nela há muitos Arthur Fleck.

[1] Aos curiosos, conferir, especialmente: ANITUA, Gabriel Ignacio. História dos pensamentos criminológicos. Tradução Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2008, 944p; ZAFFARONI, Eugenio Raúl. A questão criminal. Tradução Sérgio Lamarão. 1. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2013.

[2] Zaffaroni, 2013, p. 74-107 (livro digital)

[3] Idem, p. 94 (livro digital).

[4] PAVARINI, Massimo. Control y dominación: Teorías criminológicas burguesas y proyecto hegemónico. Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2002, p. 151-152.

[5] FREEDMAN, Aaran. It´s morning in Joker’s America. Disponível em <https://jacobinmag.com/2019/10/joker-reagan-1981-martin-scorsese-king-comedy>.

[6] O que se apresenta também no Coringa de Heath Ledger, como demonstra Karthick RM, “The Dark Knight Rises a ‘Fascist’?”Society and Culture, 21 de julho de 2012 apud ZIZEK, Slavoj. Disponível em <https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/08/ditadura-do-proletariado-em-gotham-city-artigo-de-slavoj-zizek-sobre-batman-o-cavaleiro-das-trevas-ressurge/>.

Lucas Arieh é membro do coletivo O Contraditório

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