O pedagogo Mao
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O pedagogo Mao

16 de outubro de 2020
O pedagogo Mao

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Tenho 21 anos de sala de aula. Desses, os dez primeiros passei na privada... quer dizer... na iniciativa privada. Uma das coisas que me recordo sobre dar aula nos principais colégios particulares de Natal é que você tinha sempre que pensar bem no que ia dizer, porque, no contexto fortemente provinciano dessa cidade inventada por Câmara Cascudo, as palavras de um professor poderiam escorrer pelas frestas das portas e ir bater na sala de jantar de algum político poderoso, figurão do judiciário ou empresário de província metido a besta. E quando você está na privada, especialmente num estado que até pouco tempo era governado apenas por filhos e netos de coronéis do gado, algodão e do açúcar, desagradar um cliente poderoso é o caminho mais rápido para ser direcionado ao paredão do setor de RH da empresa.

Por isso, quando entrei no IFRN, onze anos atrás, senti aquele alívio dos que escapam do gulag corporativo e podem exercer, sem receio de retaliação, suas liberdades liberais, duramente conquistadas por anos de revoluções burguesas e pela democracia, tão cantada e decantada em nossa constituição federal de 1988. Mas, como diz o ditado: alegria de pobre dura pouco (o que também vale para a raríssima classe média ilustrada potiguar, diga-se de passagem).

Eis que me encontro aqui, comemorando 21 anos de atividades docentes, retornando as aulas nessa pandemia por meio do ensino remoto emergencial. Nesse gigantesco panopticum digital, volto a ter aquela sensação de vigilância, sendo obrigado a ter atenção redobrada no que digo em salas de aula virtuais e me vigiando o tempo todo para não ser exposto nas redes sociais bolsonaristas como um pernicioso doutrinador petista-gaysista, esquerdista-globalista, marxista-cultural ou comunista-stalinista; que precisa ser mandado para um campo de reeducação e ser obrigado a assistir o curso completo on line de filosofia de Olavo de Carvalho, os cultos da pastora Damares e as aulas de matemática financeira do ministro Paulo Guedes.

Difícil não imaginar que esse tipo de guerra cultural bolsonarista, que dá a tônica ideológica dessa fase política em que vivemos, não seja uma espécie de Revolução Cultural Maoísta com sinal invertido. Muita gente boa aposta nas semelhanças entre esses dois momentos históricos.

Mas não se engane, amigo velho, essas reduções não se aplicam. Há muito pouca ou mesmo nenhuma semelhança viável entre os dois fenômenos. A não ser, talvez, a da exposição pública de professores e da crítica a uma suposta doutrinação ideológica nas escolas e universidades.

Isso porque a Revolução Cultural que tomou conta da China na segunda metade dos anos sessenta e estendeu-se até a morte de Mao Tsé Tung em 1976, ao contrário do bolsonarismo reacionário (que de revolução não tem nada), talvez tenha sido o último grande suspiro revolucionário da modernidade. Um movimento político extremamente complexo que tem algumas correlações no ocidente com Maio de 68 e que pôs, no campo do universo político e cultural chinês, mais do que nunca, a juventude no centro do processo histórico.

Se podemos pensar em um marco cronológico de início da revolução cultural temos de voltar ao dia 10 de Novembro de 1965, quando entrou em cartaz nos teatros de Xangai a peça “A demissão de Hui Tui do cargo”. O espetáculo contava a história da remoção de um oficial virtuoso da dinastia Ming e parecia fazer referência clara aos acontecimentos políticos da China dos anos 60.

Aqui vai mais um ponto importante que precisa ser posto.

Interpretar o modelo de comunismo chinês usando como base o stalinismo é um reducionismo histórico, típico dos que não tem uma compreensão clara das especificidades sociais e políticas das sociedades orientais e lê tudo a partir de uma chave eurocêntrica.

Mao Tsé Tung, por mais que fosse o “Grande timoneiro” no ano de 1965, não detinha o mesmo tipo de controle absoluto da máquina partidária que Stálin conseguiu após os expurgos do final dos anos de 1930. Também não há, na milenar história imperial da China, paralelos muito sólidos com o czarismo russo que permitam adequar de maneira automática a forma como o marxismo leninismo se adaptou na terra de Ivã, o terrível; com a maneira como se encaixou no “Império do centro” regido pelo “mandato do céu” de seus imperadores ancestrais.

O fato é que após a participação da China na guerra da Coreia, a economia do país asiático estava em frangalhos. Saída de mais de duas décadas de conturbações políticas, guerra civil e invasão japonesa, a China havia saído do chamado “século da humilhação” mas ainda tateava na direção da modernidade industrial. Por isso, o camarada Mao Tsé Tung, a partir de uma crítica ao programa econômico de Stálin, preparou o chamado “grande salto adiante”, uma mobilização coletiva sem precedentes que fez com que milhares de camponeses fossem deslocados para a produção de aço, com o objetivo de impulsionar a indústria de base chinesa. O projeto redundou num grande fracasso. A despeito do investimento industrial ter subido de 38% em 1956, para 56% em 1958, os custos humanos foram monumentais, produzindo com o desmantelamento do sistema tradicional de produção agrícola, entre 1958 e 1961, a morte por inanição de milhões de chineses.

Depois dessa catástrofe humana, a crença de que Mao seria o líder certo para conduzir a China na direção do desenvolvimento desapareceu; e Liu Shaoqui, Deng Xiaoping e Zhu Enlai assumiram o protagonismo no controle do PCC, deslocando a influência e o poder de Mao para a periferia do sistema.

Por isso, quando a peça sobre o afastamento desse obscuro funcionário da dinastia Ming do seu cargo estreou em Xangai, naquele Novembro de 1965, Mao imediatamente teceu paralelos com sua própria condição, e escreveu artigos nos jornais chineses, usando uma linguagem mítica para construir uma analogia entre a situação da China daquela época, com o seu passado de velhas dinastias imperiais e a sua própria situação política de ostracismo dentro do partido.

Em Março de 1966, Mao, estimulando diretamente as massas a se sublevar contra o comitê central do partido comunista e assumir a tarefa de construir uma “revolução permanente”, escreveu: “O departamento central de propaganda do partido é o palácio do príncipe do inferno. É necessário remover do palácio, o príncipe do inferno e libertar o pequeno demônio” e continuava nesse estilo aparentemente delirante para um leitor ocidental: “as áreas locais devem produzir diversos reis macacos para criar vigorosamente um distúrbio no palácio do rei do céu” e por ai vai.

Impulsionados pela comunicação direta com Mao, através dessa linguagem mitopoética cheia de significados ocultos e analogias que lembravam comandos secretos, o jovens estudantes chineses organizaram a “Guarda Vermelha”; uma instância paramilitar que iria libertar a China do revisionismo das lideranças do partido comunista e romperia definitivamente com a doutrinação direitista nas universidades e nas escolas.

O papel da juventude maoísta era demolir os chamados “quatro velhos”: 1. Velhas ideias; 2. Velha cultura; 3. Velhos costumes; 4. Velhos hábitos. Mais do que o mérito intelectual, ou o desempenho acadêmico ou técnico, a vinculação ideológica e a fidelidade canina ao discurso do líder eram o passaporte para a acensão política e serviriam de base para definir os cargos e as posições de destaque na nova China que iria emergir daquele furor sanitário contra a corrupção dos velhos líderes e da velha política do partido comunista.

Em 24 de Agosto de 1966, começaram a circular cartazes com dizeres de Mao instigando os jovens da guarda vermelha, não apenas a denunciarem seus professores e diretores de escolas e universidades, submetidos a exposição social em rituais de humilhação pública. Mao queria agora que os jovens bombardeassem e atacassem as sedes do partido comunista chinês e quarteis do Exército de Libertação Popular da China (as forças armadas chinesas). Em 30 de Dezembro de 1966 cerca de 100 mil guardas vermelhos atacaram 20 mil soldados do exército de libertação em Xangai, e após quatro horas de luta, dominaram a cidade, fundando a “comuna do povo de Xangai” e extinguindo o partido comunista local.

Em meio a esse furor revolucionário a elite política e burocrática do partido comunista foi presa e enviada para campos de reeducação, limpando o caminho para que Mao reassumisse o protagonismo no comando do país.

A maré começou a mudar, em Julho de 1967, em Wuhan (sim, a mesma cidade que você viu esse ano nos noticiários), quando o Exército Popular de Libertação prendeu as lideranças da guarda vermelha, desmontando a mobilização dos estudantes na cidade.

A estratégia política do grande timoneiro foi extremamente sofisticada, digna dos melhores jogadores de Go. Assumindo as duas pontas da contradição que ele mesmo havia estimulado, Mao deu um “cangapé” nos seus opositores internos, usando um estilo de comunicação direta com as massas, (bem diferente da prática stalinista de expurgos internos e ações de bastidores). Seu movimento o recolocou de volta no centro do jogo político chinês quando, ao mesmo tempo, estimulava a rebeldia dos jovens da guarda vermelha, enquanto construía o suporte político e as estratégias do Exército de Libertação Popular para o restabelecimento da ordem no país.

Muito mais do que um simples movimento de “terror revolucionário” que já era conhecido desde a revolução Inglesa do século XVII, a revolução cultural maoísta foi uma guerra civil produzida e instrumentalizada por um líder carismático que, ao mesmo tempo, minou as bases do “partido-Estado” comunista e rearticulou as forças políticas no interior desse mesmo partido.

Os distúrbios que se seguiram à instalação da Comuna de Xangai durariam até 1968, quando a guarda vermelha, estimulada a dar o passo decisivo de desmontar não apenas o partido comunista mas também a própria estrutura do Estado chinês para completar o processo revolucionário na direção da “grande harmonia” prometida pela revolução de 1949, entrou em um confronto definitivo com o Exército de Libertação Popular da China e foi massacrada, sob a concordância do próprio Mao, que àquela altura era o líder dos dois grupos em conflito, atando as duas bandas da contradição que ele mesmo estimulou a eclodir.

Após a morte do grande timoneiro em 1976, o saldo de vítimas dos combates da guerra civil, das execuções públicas, prisões e torturas que ocorreram em ambos os lados, chegavam a quase um milhão de pessoas. Muitas outras foram submetidas a prisões, perseguições ideológicas e humilhações públicas durante esses anos turbulentos.

Paradoxalmente, após a morte de Mao, foi justamente Deng Xiaoping, que havia sido perseguido durante o período da revolução cultural, o líder que apontou para a China a direção do salto econômico e tecnológico que a faz despontar hoje como a grande potência do século XXI. Curiosamente não há na China atual a sensação de descontinuidade em relação a legado maoísta e ao contrário do que aconteceu com o processo de “desestalinização” na URSS após 1953, a foto do camarada Mao ainda continua pendurada nas paredes dos prédios do partido comunista, mais de 40 anos depois de sua comuna de Xangai ter sido exterminada pelo mesmo timoneiro que a estimulou.

Pois é, amigo velho, essa é a grande verdade que aquelas nações que se dizem ocidentais precisam aprender rapidinho se quiserem sobreviver nesse século turbulento que se anuncia: a China não é para principiantes.

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