O Plano Diretor de Natal desenha a cidade que se deseja no futuro?
Natal, RN 29 de mar 2024

O Plano Diretor de Natal desenha a cidade que se deseja no futuro?

13 de março de 2020
O Plano Diretor de Natal desenha a cidade que se deseja no futuro?

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O processo de elaboração do Plano Diretor de uma cidade é uma rara oportunidade de construção de um sonho coletivo em busca de uma cidade que traga, no futuro, melhor qualidade de vida para todos seus cidadãos e cidadãs. É um processo necessariamente cuidadoso e lento, pois após um diagnóstico meticuloso, há que se formular e avaliar vários e diferentes possíveis cenários futuros, para que se encontre aquele que é mais representativo dos anseios da maioria.

A Minuta do Plano Diretor apresentada em audiência pública pela Prefeitura no dia 20 de fevereiro passado demonstra que, no caso da cidade de Natal, simplesmente foi excluída a identificação de diferentes cenários futuros. Tem-se proposta de texto do Plano Diretor com um modelo fechado, que induz a verticalização generalizada na cidade e que representa a opinião de um grupo limitado de pessoas que conseguiu liderar e filtrar as contribuições feitas ao longo do processo, com a inclusão neste modelo único apenas daquelas que representavam a visão deste grupo.

Mas cabe perguntar- é boa essa proposta? Que cidade se desenha para o futuro?

O que se pretende mostrar é que em um cenário de médio e longo prazo a proposta de Plano Diretor consegue prejudicar a todos e constitui um exercício de democracia cruel, em especial quando se considera que alguns serão mais prejudicados que outros e que determinados setores da sociedade natalense se beneficiam a curto prazo das propostas contidas no plano.

Tomemos de início alguns dados que compõem o diagnóstico, antes de se avaliar as propostas. A economia de Natal tem uma forte relação com o turismo, que por sua vez estrutura-se no patrimônio constituído por suas praias e por sua paisagem, única no cenário das cidades litorâneas brasileiras. Por outro lado, a cidade tem deficiências graves no seu sistema de saneamento básico, incluindo-se o abastecimento de água, esgotamento sanitário, manejo das águas pluviais e dos resíduos sólidos. As redes ativas do esgotamento sanitário público estão disponíveis apenas para cerca de 40% dos domicílios. Mesmo onde o serviço está disponível ele está incompleto, pois parte das redes já é muito antiga e subdimensionada, não se induziu a realização das ligações domiciliares à rede pública e nem se avançou na interceptação das ligações cruzadas entre as redes de esgotamento sanitário e as de água pluviais. O resultado disso é a poluição das praias urbanas, a contaminação das lagoas, a proliferação de vetores e o crescimento das doenças transmitidas pelo Aedes Aegypti, que cresceram 19% em 2020, com relação aos já elevados índices de 2019. Difícil conversar com alguém em Natal que não relate um verdadeiro drama doméstico quanto aos casos de dengue, chikungunya e zika.

Ademais, o Boletim de Balneabilidade Praia Azul do dia 28 de fevereiro último indicou a existência de 6 praias impróprias para banho na cidade de Natal, incluindo- se o trecho da praia de Ponta Negra, onde fica o cartão postal da cidade, o Morro do Careca. As obras de esgotamento sanitário do projeto Natal 100% Saneada têm sido sistematicamente adiadas e a última previsão é de conclusão em final de 2021, caso sigam os investimentos do governo federal. Estudos solicitados pela agência reguladora do saneamento de Natal- ARSBAN- indicam um quadro de risco extremo quanto ao desabastecimento dos aquíferos superficiais na cidade e de risco alto para os aquíferos subterrâneos. Esse quadro diagnóstico enseja cuidados extremos no sentido de proteção das áreas de recarga dos aquíferos, tanto superficiais quanto subterrâneos da cidade. E indica a necessidade de contenção da expansão urbana e populacional enquanto se aguardam as obras de saneamento básico que estão programadas e parte delas em andamento.

Na análise das propostas da minuta do Plano Diretor serão destacados apenas 3 aspectos, dentre os diversos problemas que apresenta:

- ampliação imediata dos coeficientes de aproveitamento e limites de gabarito que se traduzem em ampliação das densidades populacionais de forma generalizada na cidade;

- fragilização do sistema de proteção previsto nas Zonas de Proteção Ambiental, que entre outras funções, protegem a paisagem e os aquíferos da cidade;

- enfraquecimento das Áreas Especiais de Interesse Social, pelas quais Natal é nacionalmente reconhecida e que possibilita que uma parcela da população de baixa renda possa morar junto aos locais em que há grande oferta de renda e trabalho.

Assim como em qualquer cidade litorânea, uma imagem recorrente de publicidade e propaganda sobre Natal são as praias, num cenário paisagístico que se completa com as jangadas da pesca artesanal. É curioso destacar que não são os prédios de Areia Preta ou Ponta Negra que são mostrados no material turístico. Porém, a ampliação radical dos coeficientes de aproveitamento na cidade, conforme pode ser visto no mapa adiante, extraído do documento que contém a proposta de minuta do Plano Diretor, atenta frontalmente com a situação atual e futura do sistema de esgotamento sanitário e de abastecimento de água da cidade. Coeficientes de aproveitamento de 5,0 podem levar a densidades populacionais da ordem de 1500 habitantes por hectare. Para se ter uma ideia de quão elevado são esses valores, a cidade atualmente tem densidade populacional da ordem de 50 habitantes por hectare e o Plano de Esgotamento foi projeto para 2032, prevendo-se densidades que naquela data deveriam atingir valores que variam de 20 a 200 habitantes por hectare, dependendo de cada bacia de esgotamento sanitário. A Estação de Tratamento de Esgotos Central, também conhecida por Estação do Baldo, é a única estação de grande porte em funcionamento e já está em vazão de fim de plano, ou seja, já não tem mais capacidade para atender novos domicílios. Estão sendo indicadas, para alegria dos proprietários de terreno e dos empreendedores imobiliários, possibilidades de adensamento e verticalização em locais e com valores que são completamente incompatíveis com a capacidade de suporte do seu sistema de infraestrutura existente ou mesmo do planejado para o futuro. Repassar a responsabilidade sobre o que pode e o que não pode ser construído para a concessionária dos serviços de saneamento definitivamente não é aceitável, ainda mais num contexto que, a qualquer momento, pode passar a valer um novo marco regulatório para o saneamento, que praticamente induz a privatização desses serviços.

Diversas áreas consideradas estratégicas para a proteção dos aquíferos estão indicadas com coeficientes de aproveitamento de 5,0, como por exemplo os terrenos do entorno do Parque Central, os terrenos do entorno da Lagoa Azul, como pode ser visto no mapa adiante. Algumas Zonas de Proteção Ambiental, que estão em processo de regulamentação, foram premiadas com a indicação de coeficientes de aproveitamento altíssimos. Simultaneamente, foram apresentados critérios para cálculo da transferência de potencial construtivo que beneficiam os proprietários dessas áreas. Neste cenário, a indicação dos coeficientes de aproveitamento assim elevados para áreas de proteção ambiental constitui literalmente uma transferência de dinheiro público para aqueles que possuem terrenos nessas unidades de proteção ambiental.

A ampliação dos coeficientes de aproveitamento e o enfraquecimento das Zonas de Proteção Ambiental deverão ter também impacto na ampliação das áreas afetadas por alagamento em Natal. O mapa de potencial de risco presente na minuta do Plano Diretor não deixa dúvidas quanto a extensão e gravidade do problema na cidade. São várias as correlações existentes na literatura técnica entre a ampliação da densidade populacional, a ampliação das vazões de águas de chuva e dos problemas associados às águas pluviais. Não há qualquer dúvida que a ampliação dos coeficientes de aproveitamento nos moldes propostos, ampliará significativamente os já graves problemas que se manifestam na cidade. No entanto, a reação imediata de alguns representantes do mercado imobiliário da cidade foi pleitear a exclusão do mapa do potencial de risco sob a alegação de que estava assustando o mercado e desvalorizando terrenos.

O terceiro tópico a destacar é o enfraquecimento das Áreas Especiais de Interesse Social. Algumas delas foram simplesmente excluídas, como à AEIS do Gramorezinho, reservada para proteger a moradia associada à produção de alimentos (Segurança Alimentar), nas proximidades da Av. Moema Tinoco. Outras, que foram sugeridas pelos participantes das Oficinas e Grupos de Trabalho, não foram incluídas, como a AEIS das Comunidades Tradicionais e de Pesca Artesanal. Não deixa de ser curioso que a cidade coloque os pescadores artesanais em grande parte dos seus folhetos turísticos num contexto em que se nega a esses trabalhadores o direito de um espaço para exercer suas atividades com dignidade. São atividades econômicas que articulam a moradia e por isso devem ser consideradas. Por outro lado, enfraquecem-se os mecanismos de proteção das já existentes, por mecanismos como a permissão do coeficiente de aproveitamento mais alto quando o terreno está situado entre bairros de diferente coeficiente. Na prática isso leva ao gradativo desmoronamento da proteção dessas áreas especiais, embora seja uma medida já há longo tempo pleiteada por aqueles que representam exclusivamente os interesses do capital imobiliário.

A quem interessa uma legislação altamente permissiva quanto aos gabaritos e às densidades populacionais, de forma incompatível com a capacidade dos sistemas de infraestrutura? A quem interessa o enfraquecimento dos mecanismos de proteção da paisagem, de proteção da população carente que reside em áreas centrais? É possível assegurar que, a médio prazo, todos serão prejudicados. A curto prazo, numa primeira análise, prevalece a ganância e a forma predatória de crescimento urbano que considera a cidade como um parque de negócios e, infelizmente, só beneficia alguns.

Ricardo Moretti

(Professor visitante do Departamento de Arquitetura e Urbanismo – UFRN, membro do Fórum Direito à Cidade UFRN)

Érica Guimarães

(Advogada, doutoranda em Estudos Urbanos e Regionais – UFRN, membro do Fórum Direito à Cidade UFRN)

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