O que ganhamos com Bolsonaro
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10 de março de 2019
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Depois de dois meses da posse de Jair Bolsonaro na presidência da República, já podemos fazer um balanço a respeito do que tem significado esse governo para o país. Já podemos debitar na conta dos eleitores que votaram em Bolsonaro algumas “conquistas extraordinárias” que teve o país nesses dois meses de governo (sic). Depois de dois anos do desastroso governo Temer, o governo nascido do golpe, e de dois meses de governo do capitão, vai ficando difícil manter o discurso que atribui todos os males do país ao PT, a Lula e a Dilma. Vai se tornando imperativo que os bolsonaristas tenham alguma coisa a dizer sobre o seu mito e sobre sua atuação à frente dos destinos do país. Vai ficando difícil continuar respondendo cada pergunta acerca do candidato em que votaram com uma acusação em relação ao PT e a seus ex-presidentes. Está na hora de começarem a apresentar o que acham ser as virtudes e as conquistas do governo em exercício. Pretendo, hoje, ser generoso com os que tiveram a ideia de entregar o país ao clã Bolsonaro, a um partido nanico e de origens duvidosas como o PSL, à trupe olaviana e sua filosofia de alcova, enumerando algumas “conquistas” que tivemos nesses dois meses de governo da direita no país. Vejamos:

1. Temos, talvez pela primeira vez, um governo que tem a coragem de afirmar publicamente que governa para os mais ricos. Coerente com o perfil da maior parte do eleitorado que o elegeu, o governo Bolsonaro veio para reduzir a carga tributária dos ricos, reduzir os direitos dos trabalhadores, preservar os privilégios de dadas castas privilegiadas do serviço público (militares, membros do judiciário), atacar os demais servidores públicos, ampliar a pobreza acabando com as políticas sociais, inclusive com o combate a fome, levar os mais velhos à indigência com a chamada reforma da Previdência. Reconhecemos que é preciso coragem para, ao mesmo tempo, apresentar uma reforma da previdência, que vai reduzir drasticamente direitos, em nome do combate ao déficit público e desonerar setores inteiros da economia de impostos, perdoar dividas milionárias dos ruralistas e desmontar os mecanismos de combate a sonegação. Reconhecemos a ousadia do capitão ao defender que o trabalho no país retorne à informalidade, que se destrua, inclusive, a justiça do trabalho, que os sindicatos sejam desmantelados e criminalizados, que a luta por direitos sociais seja imediatamente identificada com subversão comunista e tratada como caso de polícia. Não há dúvida que com o governo Bolsonaro marchamos aceleradamente em direção às relações capital e trabalho do século XIX. O neoliberalismo faz banquete com o velho liberalismo, todos à brasileira, eivados de conservadorismo e autoritarismo.

2. Temos efetivamente um governo que não pratica a “velha política”, talvez nem mesmo a política. A incapacidade de negociação política do governo e do capitão em particular é visível. Ancorado num discurso de campanha de criminalização da política e dos políticos, o presidente, e muito de sua entourage, teima em não descer do palanque e vai fornecendo, a cada semana, espetáculos de humilhação pública de aliados, de desdenho em relação a parlamentares e ao Parlamento, do uso de táticas truculentas como aquelas usadas para a conquista da presidência do Senado. Tendo como grande estrategista a figura de Carluxo, o indômito, esse é efetivamente um governo que tem se mostrado duro com os políticos e com todos que se aproximaram do clã querendo faturar a sua popularidade de ocasião. O capitão não confia em ninguém, nem na própria sombra e, por isso, vê traições e traidores em todos os locais, seu jeito “delicado” de tratar os correligionários, seu incontrolável personalismo, seu jeito autoritário de ser, tem feito um general durão como Hamilton Mourão parecer um Maquiavel da habilidade política. Temos um presidente que está mais preocupado em manter satisfeita e fiel a sua matilha nas redes sociais do que em viabilizar a governabilidade do país. Ele parece firmemente preocupado com as próximas eleições, os quatro anos que terá de governar parece ser apenas um interregno que não terá efeitos tão decisivos em sua reeleição como a fidelidade dos buldogues bolsonaristas das redes sociais. Por isso, ao invés de procurar construir consensos, de procurar negociar, o presidente crê que a melhor forma de governar é continuar atacando inimigos fantasmáticos pelas redes sociais. Ele acha que irá sustentar quatro anos de governo xingando o PT, vendo comunismo em todas as coisas e continuando a ser o bicho politicamente incorreto que sempre foi. Ele continua esquecido, embora em seu discurso oficial de posse tenha tido um lampejo de racionalidade política, que é agora presidente de todos e não apenas de seus partidários. Ele governa uma sociedade plural e complexa e queda estranho continuar reduzindo o país a uma briga entre azul e encarnado como numa brincadeira popular. A atitude de obrigar o seu ministro midiático da Justiça a demitir uma suplente de uma comissão por pensar diferente dele e de seus seguidores mais radicais mostra que ele ainda não acordou para a realidade, já que ele nunca pensou, em sã consciência, que fosse estar sentado, um dia, na cadeira de presidente da República.

3. Temos efetivamente um governo que se comunica de outro modo. Embora conte com meios de comunicação tradicionais dispostos, como sempre, a ser veículos chapa branca, como as Redes Record e SBT, que disputam quem faz o jornalismo mais sabujo, esse governo aposta que toda sua comunicação se dará por lives e postagens na internet. A forma como trataram os jornalistas na posse já deixava claro que o modelo Donald Trump de ser fazia furor no Planalto. Como o presidente não consegue articular um discurso livre do telepronter, como fica muito tenso sempre que tem que enfrentar cara a cara os jornalistas, pois seus recursos intelectuais são parcos, ele reproduz, como presidente, a tática que lhe deu notoriedade como parlamentar: o discurso bombástico, gritado, com afirmações peremptórias seguidas sempre de um tá ok e de um isso aí ou disso daí. Perto do novo presidente, Dilma Rousseff e sua reconhecida falta de elegância retórica é Cícero pregando as catilinárias. O “discurso” de Davos, uma das páginas mais vexatórias da história do país deixa claro que o presidente é um homem “modesto, humilde, um como qualquer um de nós”. Temos que reconhecer que o presidente é a encarnação fiel da inteligência e acuidade intelectual de seus seguidores e de seu guru filosófico. A estratégia perfeita de comunicação incluiu ter a traseiro filmado pelo filho no hospital, aparecer de pijama, chinelo e camisa falsificada do Palmeiras, comer num bandejão frango frito e arrotar que isso era parte da austeridade governamental.

4. É preciso admitir que esse governo veio para acabar com tudo que está aí, para acabar com a farra. Em dois meses, os verbos que mais se conjugaram nesse governo foram aqueles que se referem ao ato de acabar com alguma coisa que existia antes. Começou acabando com ministérios voltados para as políticas sociais, para os trabalhadores, para as mulheres, para os negros, para a cultura e as artes. Acabou até mesmo com o ministério voltado para a indústria e o comércio, num gesto de agradecimento ao engajamento monetário de empresários desses ramos no patrocínio de sua campanha ilegal nas redes sociais. Num gesto corajoso e inédito entregou as terras indígenas à administração dos ruralistas. Por seu turno presenteou os ruralistas, seus eleitores convictos e belicosos, logo no início do governo, com uma querela com a China e outra com os países árabes, mercados fundamentais para o agronegócio brasileiro. Dois meses e não se viu um plano de governo para qualquer área. Dois meses que tudo que se produziu foram factoides e fake news tal como decorreu em sua campanha. Dois meses de idas e vindas, de ditos e não ditos, de faz e volta atrás, deixando claro que o governo como peru bêbado gira sem sair do lugar. Dois meses para parir um pacote para a segurança pública de viés autoritário e que vai apenas dar superpoderes de espionagem ao governo sobre a vida das pessoas, aumentando a insegurança e a violência, à medida que praticamente libera a matança policial. Dois meses para parir uma reforma da previdência cheia de armadilhas e jabutis que se encaminha para destruir o sistema público de seguridade social e produzir a precariedade e a indigência da vida de muitos. Acabaram com o Minha Casa, Minha Vida, acabaram com o Brasil Sorridente, acabaram com o Mais Médicos, acabaram com o PAC, acabaram com a Embraer, estão acabando com a Petrobras, que nos governo petistas cresceu três vezes de valor e que agora fecha e vende pedaço por pedaço, acabaram com o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional, etc.

5. Realmente, como disse o presidente em Vitória, estamos caminhando para acabar com o senso crítico e com o “marxismo cultural”. Estamos mesmo livres do comunismo e do socialismo que estiveram implantados no país, nos últimos anos. A desigualdade social voltou a crescer e é a maior em sete anos. A miséria e a fome não param de atingir novas camadas da população. O crescimento do PIB é o menor entre todas as economias mais importantes do planeta. O desemprego, mesmo com todas as condições dadas para o aumento da precariedade dos contratos, continua em patamares elevados. A arrecadação continua em declínio, assim como o consumo das famílias. Naqueles anos infernais em que comunistas governavam o país os empresários ganhavam dinheiro como não fazem há pelo menos quatro anos. O governo tratou de substituir o senso crítico pela ideologia reacionária mais descarada. A escola sem partido foi implantada pelo ministro Velez, ela inclui a militarização das rotinas, o cantar o hino nacional e o repetir o bordão de campanha do candidato eleito presidente, tudo filmado sem consentimento dos pais e enviado ao MEC para a necessária avaliação do apartidarismo da escola. A ideologia de gênero foi definitivamente abolida, com a ajuda de Jesus na goiabeira, com a obrigatoriedade de menino vestir azul e menina vestir rosa. O fim do senso crítico inclui o abandono definitivo da noção de verdade e sua substituição pela mentira, pelo achismo, pela invencionice. O presidente fez sua campanha toda baseada em mentiras deslavadas como o kit gay e a mamadeira de piroca, a ministra Damares admite que mente para seus fieis, o ministro Sales do meio ambiente mente sobre suas condições jurídicas, o presidente mentiu sobre não ter conversado com Bebianno, o ministro do Turismo mente sobre o laranjal em que esteve envolvido, o ministro Araújo mente todo dia sobre a Venezuela. O ministro astronauta, como teve a experiência de flutuar no espaço, teve que desmentir que a terra é plana, uma das teses fundamentais dos novos cientistas que apoiam o governo. No lugar do marxismo cultural foi colocado os delírios do ministro das Relações Exteriores, os raciocínios brilhantes da ministra Damares, a constatação do ministro da Educação de que somos ladrões e canibais, de que a universidade não é para todos.

6. Realmente temos que admitir que demos um giro de noventa graus em nossa política externa, que foi desideologisada, deixou de ser comunista. Pela primeira vez o Brasil deixa de ser um país identificado com o multilateralismo, com a paz, com o equilíbrio e profissionalidade em sua política externa. A dupla Araújo e Eduardo Bolsonaro, auxiliados pelo embaixador honorário na Virgínia, Olavo de Carvalho, tornaram, rapidamente, o Brasil uma piada internacional. Fazendo uma política externa alinhada e subserviente, até mesmo deslumbrada, aos EUA sob o governo Trump. O Brasil quase entra numa guerra com um vizinho para servir de bucha de canhão aos interesses ianques. O presidente recebe em palácio um autoproclamado presidente da Venezuela que não teve um voto para isso e que mesmo assim se diz um defensor da democracia. Seria o mesmo que Maduro receber o autoproclamado presidente do Brasil, José de Abreu. Se não fosse a cada vez maior banda militar do governo atuar para controlar as atitudes alopradas do chanceler olavista e poderíamos ter o Brasil encalhado numa guerra que não é sua. A aproximação com o governo de extrema-direita de Israel, ameaçado de impeachment, é outra vexatória página da política externa sem ideologia do governo Bolsonaro. A ameaça de transferência da embaixada para Jerusalém, além de ser um gesto para agradar as hostes cristãs de seu governo, cristãos que seguem menos Cristo que ao judaísmo, colocou o pais em situação difícil com os países árabes. O B dos Brics vai desaparecendo e com ele todas as oportunidades de negócios e intercâmbios com esses países. A hostilidade ao Mercosul e a Unasul praticamente paralisou o processo de integração sul-americana. O Brasil já coleciona reprimendas da ONU, o que deve alegrar o governo em função que considera o organismo, assim como a Unesco, como um agente do marxismo internacional. Marx nunca contou que teria tão relevantes propagadores. Esse é um governo que vive a esmurrar fantasmas e fantasias e a ignorar a realidade, talvez porque seja o governo de um mito, um ser também imaginário. Talvez, assim como um fantasminha nada camarada, o mito, em dado momento, faça pluff e desapareça como por encanto e emerja diante dos olhos atónitos da nação toda a devastação econômica, social, política e cultural que esse governo está empreendendo.

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