O retorno do Brasil ao mapa da fome
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O retorno do Brasil ao mapa da fome

19 de fevereiro de 2021
O retorno do Brasil ao mapa da fome

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A inclusão da alimentação para a população é uma das garantias fundamentais da Constituição Federal de 1988. Segundo o Art. 6o “São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o transporte, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição”.

A pergunta é: em que medida esses direitos estão sendo assegurados desde então? Se a partir de 2003 houve avanços consideráveis no combate à fome e à pobreza e em 2014, segundo relatório global da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) o país saiu do Mapa Mundial da Fome, que decorreu da priorização da agenda de Segurança Alimentar e Nutricional (SAN) com destaque ao lançamento da Estratégia Fome Zero, dados relativos aos anos de 2017-2018, divulgados no dia 17 de setembro de 2020 divulgados pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (Análise da Segurança Alimentar no Brasil) constatou-se que houve um retrocesso, com o país entrando novamente no Mapa da Fome.

Conforme consta no documento, foi a primeira vez que trouxe as prevalências de Segurança Alimentar, segundo a Escala Brasileira de Insegurança Alimentar – EBIA. As investigações anteriores foram feitas em 2004, 2009 e 2013 da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios – PNAD, com o uso da mesma metodologia e com os dados dos anos anteriores, se permite a comparação dos indicadores.

Em relação a 2017-2018 os dados indicam que houve um retrocesso e aumento da pobreza, se expressando no aumento de domicílios com Insegurança Alimentar. Entre outros dados, informa que dos 68,9 milhões de domicílios no Brasil, 36,7% (o equivalente a 25,3 milhões) estavam com algum grau de Insegurança Alimentar (IA) que se divide em Leve, Moderada e Grave.

Em todos os domicílios considerados como de insegurança alimentar, se tem menos acesso à água e esgoto, ou seja, menos acesso a abastecimento de água , esgotamento sanitário e destino do lixo, entre outros.

E a pesquisa indica que na população residente, estimada em 207,1 milhões de habitantes eram 84,9 milhões, sendo 56,0 milhões em domicílios com Insegurança Alimentar Leve, 18,6 milhões Moderada e 10,3 milhões Grave com 3,1 milhões de domicílios. (Fonte: IBGE, Diretoria de Pesquisas, Coordenação de Trabalho e Rendimento, Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios 2004/2013 e Pesquisa de Orçamentos Familiares 2017-2018).

Em relação às regiões, no Norte e Nordeste menos da metade dos domicílios tinham acesso pleno e regular aos alimentos, ou seja, menos de 50% estão em Segurança Alimentar, segundo os critérios definidos pelo órgão.

A pesquisa também revelou que em torno de 50% das crianças menores de cinco anos moravam em domicílios com algum grau de insegurança alimentar; e que domicílios com um maior número de moradores se apresentaram com maior associação à condição de insegurança alimentar (Fonte: Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) 2017-2018 – IBGE)

Outro dado relevante da pesquisa é de que nos domicílios em condição de Segurança Alimentar, predominam os homens como pessoa de referência (61,4%), se invertendo conforme aumenta o grau de insegurança alimentar, chegando a 51,9% de mulheres, sendo 1,3 milhões no Nordeste como pessoa de referência nos domicílios com insegurança alimentar grave.

Um aspecto da pesquisa é que, como existem dados de anos anteriores, é possível fazer comparações. Em 2004, ano da primeira edição, o que se considera como prevalência nacional de Segurança Alimentar foi de 65,1% e cresceu em 2009 (segundo ano da pesquisa) para 69,8% e subiu para 77,4% em 2013.

No entanto, nos anos 2017-2018 (Governo Michel Temer), para os quais há dados consolidados, houve um retrocesso, ou seja, um aumento de domicílios com insegurança alimentar, com aumento de 33,3% em relação a 2004 e 62,2% em relação a 2013, enquanto a insegurança alimentar moderada aumentou 76,1% em relação a 2013 e a insegurança alimentar grave aumentou 43,7%, mostrando que houve um crescimento da pobreza no país.

Entre 2001 e 2012, conforme os dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), houve uma curva descendente em relação aos anos anteriores, quando se erradicou 75% da pobreza extrema no Brasil.

No entanto, entre 2014 e 2019, 4,5 milhões de pessoas que passaram para a extrema pobreza, o maior percentual da série histórica do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) desde 2012.

No final de 2019, segundo os dados divulgados pelo IBGE (Síntese de Indicadores Sociais) 52,5 milhões de pessoas viviam com menos de R$ 420 per capita por mês, que segundo os critérios adotados pelo Banco Mundial, indicam a condição de extrema pobreza. Destes, apenas 13,6% tinham alguma ocupação. Os que estavam (e estão) abaixo da linha de pobreza eram (e ainda são) na sua maioria a população preta ou parda.

Naquele momento representava 72,7% dos pobres e em números absolutos 38,1 milhões e destes as mulheres era o maior contingente, com 27,2 milhões. Segundo os dados, o rendimento domiciliar per capita médio de pretos ou pardos era a metade do recebido pelos brancos.

O fato é que a partir de 2015 a pobreza e a pobreza extrema cresceu, como um dos indicativos de redução do papel do Estado, com políticas econômicas que não tem por objetivo a justiça social, a redução da pobreza e da desigualdade. Houve a manutenção de alguns programas sociais, como Bolsa Família, mas é incontestável que os seus beneficiários têm menos acesso a serviços básicos de saneamento – como água potável, esgotamento sanitário e coleta de lixo, menos acesso de seus filhos à escola etc. e cujos valores são insuficientes para as necessidades básicas (alimentação, saúde, transporte, educação etc.), vivendo em condições precárias: Segundo os dados do IBGE, apenas 37,6% dos beneficiários tinham acesso a esgotamento sanitário com rede geral ou fossa séptica.

Outro dado relevante da pesquisa divulgada em setembro de 2020 em relação aos anos anteriores é que a miséria atingia principalmente os estados do Norte e Nordeste, especialmente a população preta e parda e que, entre outros aspectos, 11,8% dos jovens mais pobres abandonaram a escola (pública) sem concluir o ensino médio.

E não se trata apenas do Brasil. Dados de 2018 relativos à América Latina mostraram que uma em cada dez pessoas viviam na pobreza extrema (10,2%), o maior índice desde 2010. Em 2002 eram 57 milhões e passou para 62 milhões em 2017 e em 2018, 63 milhões.

No dia 2 de dezembro de 2020 as Nações Unidas apresentaram a nova edição do relatório Panorama da Segurança Alimentar e Nutricional na América Latina e no Caribe 2020, com foco nos territórios que sofrem com os maiores índices de desnutrição, atraso no crescimento infantil etc. e fez uma projeção segundo a qual a extrema pobreza na América Latina e no Caribe deveria alcançar mais de 83 milhões de pessoas em 2020.

Segundo o relatório “O Panorama 2020 analisa a desigualdade territorial da má nutrição e convida os países a concentrarem seus investimentos e políticas em territórios atrasados”. O relatório alerta ainda que a pandemia atinge a região “em um momento em que a segurança alimentar já estava em declínio: o número de pessoas afetadas pela fome cresceu 13 milhões só nos últimos cinco anos, e um em cada três habitantes da América Latina não teve acesso a alimentos nutritivos e suficientes em 2019”.

E ainda que “A população afetada por Insegurança Alimentar tem aumentando na América Latina dos últimos cinco anos. Em 2019 quase um terço da população, 191 milhões de pessoas se viram infectadas por Insegurança alimentar moderada ou grave. Destes, 57,7 milhões, aproximadamente 10% da população da região estavam em situação de insegurança alimentar grave, ou seja, sem alimentos, passaram fome ou estiveram mais de um dia sem comer” (http://www.fao.org/americas/publicaciones- audio-video/panorama/2020/es/).

Uma das dimensões da crise é o desemprego e suas consequências. Com a pandemia, houve um aumento do desemprego e crescimento do trabalho informal. Em dezembro de 2020, a taxa de desemprego no Brasil alcançou um novo recorde. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad-Covid), a população desocupada chegou a 14,2% da força de trabalho. Eram 14 milhões de pessoas sem emprego em novembro, segundo os dados colhidos pelo IBGE: “Segundo o instituto, houve um aumento de 200 mil desempregados em relação ao mês de outubro (aumento de 2%), e 3,9 milhões de pessoas em relação ao mês de maio no início da pandemia (aumento de 38,6%). Apesar disso, a taxa de desocupação se manteve estatisticamente estável, passando de 14,1% em outubro para 14,2% em novembro. O Nordeste apresentou o único aumento no período – o desemprego na região passou de 17,3% para 17,8%. Nas regiões Norte (15,4%), Sudeste (14,3%), Centro-Oeste (12,2%), e Sul (9,3%), o desemprego se manteve estável. (https://congressoemfoco.uol.com.br/economia/desemprego-dezembro-2020-ibge/).

Os excluídos não têm acesso à cobertura previdenciária na saúde e nas aposentadorias, seguro-desemprego, assim como políticas de inclusão social e trabalhista. O que se constatou na pesquisa e continua é que há mais pessoas trabalhando sem carteira assinada, e os que têm, sem aumento salarial.

O que explica a continuidade das desigualdades e crescimento da pobreza? São diversos fatores. No caso do Brasil, a constatação do crescimento da extrema pobreza coincide com o início da recessão, que começou em 2014, cujas maiores vítimas foram (e são) os mais pobres. Desde então, houve um aumento da pobreza e a concentração de rendas, que tem sido contínua (conforme um estudo da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (CEPAL) que mostra o crescimento da extrema pobreza no Continente com o pior índice desde 2009).

Este quadro tende a piorar com os impactos da pandemia de COVID-19 em 2020, ou seja, permite projetar um aumento significativo da fome, da insegurança alimentar e dá má nutrição, mesmo depois dela.

O psicanalista Joel Birman no livro “O trauma na pandemia do coronavírus” (suas dimensões políticas, sociais, econômicas, ecológicas, culturais, ética e científicas) publicado pela Editora Civilização Brasileira (2020) ao analisar a pandemia e suas consequências, entre outros aspectos, se refere à opção de países como os Estados Unidos e Brasil, pelo imperativo do crescimento econômico “dando às costas” ao imperativo da vida. São governos que negaram desde o início os perigos, dramas e traumas causados pela pandemia, chamada até de “gripizinha” e “resfriadinho”.

Com o negacionismo, especialmente em relação à ciência, ao privilegiar o imperativo da economia e não da vida, evidenciou o descalabro da gestão política, social e sanitária. Para ele “o imperativo ético fundamental da vida, que foi sacrificada em nome de cálculos políticos espúrios por parte de muitos governantes no contexto social pandêmico, de forma que o sadismo e a crueldade se impuseram efetivamente conjugados na escolha do imperativo econômico”.

Segundo Birman as desigualdades sociais, a intensificação do processo de precarização e da promoção do racismo estrutural e das hierarquias de gênero não apenas continuaram, mas se tornam mais traumáticas. Como se sabe, a pandemia já causou milhões de mortes (dados de 7 de fevereiro de 2021 no Brasil informam mais de 230 mil mortes e 9,5 milhões de infectados e continua aumentando, sem a perspectiva de vacinação em massa) e trouxe também a ampliação da crise econômica, com crescimento do desemprego e fez com que o que havia sido constado já em 2018, da insegurança alimentar , se ampliasse, atingindo as populações mais pobres.

Uma das políticas adotadas foi o esvaziamento das políticas voltadas para a agricultura familiar assim como o fim do Conselho Nacional de Segurança Alimentar (Consea)em 2020. No primeiro dia do atual governo, ou seja, em 1o de janeiro de 2019, uma MP (Medida Provisória) n. 870, retirou da Losan (Lei Orgânica de Segurança Alimentar e Nutricional), criada em 2006, os mecanismos de participação social. O Consea foi criado em 1993 e era responsável pelo controle social e participação da sociedade na formulação, monitoramento e avaliação de políticas públicas de segurança alimentar e nutricional. Depois de muitas discussões, inclusive no Congresso Nacional, veto presidencial etc., em sessão conjunta no Congresso Nacional no dia 24 de setembro de 2020, com 299 votos a favor e 162 contrários , o conselho foi extinto.

Em setembro de 2020, depois da divulgação da pesquisa do IBGE, uma nota publicada da FAO com o Instituto Comida do Amanhã salientava que o Brasil havia retornado ao Mapa da Fome, ressaltando que no meio rural, a situação ainda era mais grave, ultrapassando os 7% e que entre as famílias mais vulneráveis estavam em domicílios chefiados por negros e mulheres, especialmente na região do Nordeste.

O fato é que, desde então, considerando os impactos da pandemia da Covid-19, houve uma evolução em relação ao crescimento da pobreza e da pobreza extrema no país, especialmente nas regiões Norte e Nordeste. Em 2018, 47% da população abaixo da linha de pobreza eram da região Nordeste e todos os estados das regiões Norte e Nordeste apresentaram indicadores de pobreza acima da média nacional.

Parece inegável que no Brasil a pandemia contribui para recolocar o país no mapa da fome. Já em 12 de maio de 2020, em entrevista o jornal O Estado de S. Paulo, o economista Daniel Balaban, representante para o Brasil, o Programa Mundial de Alimentos (PMA) da agência da Organização das Nações Unidas (ONU) (que ganhou o prêmio Nobel da Paz, anunciado no dia 9 de outubro de 2020) alertava que com a pandemia de coronavírus e seus efeitos econômicos, o Brasil poderia voltar ao Mapa da Fome. A estimativa na época era a de que cerca de 5,4 milhões de pessoas passariam para a extrema pobreza em razão da pandemia. O total chegaria a quase 14,7 milhões até o fim de 2020, ou 7% da população, segundo estudos do Banco

Mundial. Segundo ele “O Brasil saiu do Mapa da Fome em 2014, mas está caminhando a passos largos para voltar”.

E de fato ocorreu, embora as causas não se devam apenas a pandemia. Pelo menos desde o golpe de 2016 houve um retrocesso no combate à fome e extrema pobreza no Brasil, motivada pela expansão das políticas neoliberais e a consequente desestruturação e desmantelamento das políticas de proteção social, assim como da segurança alimentar e nutricional. E sem mudanças profundas e estruturais nesse sentido – e ao que tudo indica não está no horizonte, mesmo com as pretendidas reformas – essa situação, que antecede a pandemia, deve perdurar além dela.

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