cinza sobre cinza
olho boca nariz
estranhezas belezas afins
o sol que queima as paredes
já. nelas
a luz da tarde com frio
o frio que evapora na pele
só frio
o nó na linha. arremate
botões. as coleções desfeitas
todas. jogar os dados
lamber as bordas. bordados
conta por conta. um conto
tule. filó. meu peito
meus peitos nus
a cinza que restou
cinza sobre cinza
vem a chuva
e no vidro ela imprime um filme na roupa que visto. no corpo que vivo. sinto o cheiro do feijão calado. e lembro do sal. sempre fui boa de sal. digo, de salgar a comida. sempre tive a medida certa no tato. na ponta da língua. mas ultimamente tenho errado tanto. sempre pra mais. será que de tanto salgar me tornei sal e agora deixo na comida, além do devido, um tanto do meu sal? tenho medo de perder o feijão. a comida batizada pelo fogo. será que a ponta dos meus dedos viraram sal? será que meu corpo virou uma montanha das salinas de macau? dizem que erramos no sal quando estamos avoadxs. nos pensamentos perdidos. fritos. quando estamos desorientadxs. e eu tenho pensado demais. enlouquecido demais. todos os dias eu acordo como uma mulher pra enfrentar o que o mundo ainda, que impressionante, ainda é para uma mulher. eu pari duas mulheres, e muitas vezes choro olhando pras duas em meus braços, pensando em tudo que tantas mulheres passam a cada segundo e que um dia pode, esse segundo, acontecer com elas. todos os dias eu acordo como uma mulher pra ainda sentir a dor que quase 80% da violência contra mulher é na face, nos seios e no ventre. querem nosso chão. nossa raíz forte. querem nosso ponto final. todos os dias eu acordo como uma mulher pra me impressionar com a existência de milhares de dentistas voluntários só pra reconstruir o sorriso dessas mulheres partidas. todos os dias eu acordo como uma mulher pra não deixar barato. todos os dias eu acordo como uma mulher pra lutar. deve ser em tanto pensamento que perco o sal. será que meu tempero volta a estar pra peixe? pra o que tiver de ser, coisa e tal?
ei, viu o pote de sal?