O vestido
Natal, RN 26 de abr 2024

O vestido

21 de outubro de 2019
O vestido

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Chegou em casa, fechou a porta atrás de si com estrondo.

Era tudo dor e solidão.

Com aquele cheiro fétido de éter e burocracia a lhe empestar o corpo, foi de pronto ao chuveiro. Em agosto, a água fica gelada, os ventos são mais intensos também. Ela lidava bem com o frio, só não esperava perder naquele dia o marido.

Arrancou de si o vestido cor de rosa com cobrinhas negras. O primeiro que lhe caiu à mão quando, transtornada, vestiu-se às pressas para ir reconhecer o corpo, um pescoço degolado no navio Impassível onde trabalhava.

Dias atrás, ele mesmo presenteara a ela aquele trapinho brega.

Tinha cheirinho de feira mistura de fumaça e alecrim.

E caiu muito bem no corpinho dela.

Melhor presente que ganharia nos próximos 53 anos.

Mas, naquele ali e agora, então, fedia, o vestido. Ela, viúva sofredora em sua sorte, cheirou por muitos minutos aquele pano com sofreguidão, lágrimas no rosto. Escorria toda ela o que havia por ora:

Dor e solidão.

O chuveiro escorrendo o tempo que não volta mais.

A água não era só gelada, era água que não acolhia, não lavava a alma, não dizia nada.

Como dizer mesmo o nome do marido degolado que a fez também perder a cabeça?

Esqueceu, um dia. Porque, quando viúva serena em sua sina, viu a vida seguir. É assim. As cobrinhas foram para um canto escondido e o acaso trouxe outros amores, com seus aborrecimentos tediosos e seus ligeiros ardores, tão inúteis quanto intensos...

Tão.

Foi na época dos festejos juninos que chegou a vez de Vicente.

Vicente chegou naquela zoada de festa de São João, chegou sincero, silente. Tal como faz, tranquila e calma a soberana serpente em que se transforma um dia reles cobrinha magrela de rio.

Chegou em um dia de junho. Chegou Vicente na vida da viúva que era ela na noite em que outras meninas, incautas e divertidas, esfaqueavam bananeiras, procurando marido e querendo resposta afinal para tanto existir.

O vestido que ela usava já era então azul bem blue.

Foi com aquele novo vestido que ela percebeu, na noite junina, que Vicente lembrava um pouco o Venceslau, aliás.

Mas bem de longe.

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