Pão para o espírito
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Pão para o espírito

31 de julho de 2018
Pão para o espírito

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O bom de morar em outra cidade e voltar nas férias para a terra de origem é que, fatalmente, a gente acaba assumindo um olhar de turista aprendiz, à maneira de Mário de Andrade. Por mais que as ruas e avenidas pareçam velhas conhecidas, elas nunca são as mesmas, tal como o rio de Heráclito cujas águas nunca são as mesmas que correm pelo mesmo lugar. Aceitando essa condição de viajante que quer (re)conhecer a cidade para (re)aprender também algo sobre si mesmo, numa sexta-feira de sol, lá me fui eu (re)ver o Centro Histórico de Fortaleza.

Depois de circular à toa pela Praça do Ferreira, Passeio Público, Museu do Ceará e Igreja do Rosário, eis que dou uma entrada casual no prédio da Academia Cearense de Letras e dou logo de cara com o livro das atas perdidas da Padaria Espiritual (organização de Sânzio Azevedo. Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora, 2015).

Para quem por ventura ainda não conhece a Padaria Espiritual (ou não se tocou da referência na canção do Ednardo), trata-se de um exemplo emblemático do encontro profícuo entre letras, boemia e humor. Leonardo Mota e Sânzio Azevedo são grandes nomes da terra de Iracema que já esmiuçaram demais o tema, e beira até um certo atrevimento de minha parte ousar falar, depois deles, sobre aquela “sociedade de rapazes de Letras e Artes”. Mas como eu sou atrevida mesmo, peço licença para falar um pouquinho daquele grupo literário que fez e aconteceu no Ceará Moleque de fins do século XIX.

A Padaria Espiritual foi o nome assumido por um grupo de amigos prosadores e poetas, contagiados pela iniciativa do escritor Antônio Sales (1868-1940), que tinha por objetivo “fornecer pão de espírito aos sócios em particular e aos povos em geral”. Tal intento, um tanto quanto pretensioso, já refletia o espírito de galhofa e anarquia do grupo, espírito esse registrado em seu célebre Programa de Instalação. Assumindo como inimigos “padres, alfaiates e polícia”, o programa estabelecia que entre seus sócios – os padeiros – ficava expressamente proibido “o tom oratório sob pena de vaia”, “qualquer referência à rosa de Malherbe” (uma expressão originada a partir de um poema romântico francês para indicar algo de pouca duração) e “textos citando animais e plantas que não pertencessem à Fauna e Flora nacionais”. Como apontou Sânzio de Azevedo, essas “proibições” podem ser tomadas como brincadeira, mas também como um posicionamento que já apontava para tendências mais modernas e menos romântico-parnasianas na literatura do grupo.

Assim, em maio de 1892, surgia a Padaria Espiritual, confraria literária composta por 20 integrantes que, assinando seus textos com pseudônimos bizarros (Antônio Sales, por exemplo, era Moacir Jurema, Adolfo Caminho era Felix Guanabarino, Rodolfo Teófilo era Marcos Serrano, para citar só alguns), lançaram ao mundo suas produções literárias e artísticas por meio de um jornal intitulado “O Pão”. De 1892 a 1898, ao longo de três fases e pequenos intervalos, aqueles jovens senhores reuniram-se na antiga rua Formosa (atual Rio Branco) para fazer prosperar a ideia inicial que se projetou a partir de seus encontros no antigo Café Java: fornadas para alimentar o espírito.

O livro das atas perdidas da Padaria (preciosidade encontrada por acaso por uma funcionária do Instituto Histórico e Geográfico do Ceará), além do Programa de Instalação e de muitas das colunas do jornal O Pão, também reflete o clima de escracho reinante no grupo.

O estandarte original da Padaria Espiritual, em exposição no Museu do Ceará.

Logo na ata de abertura, por exemplo, datada de 30 de maio de 1892, a 1ª. Fornada registra a presença de “alguns cidadãos ignaros de mais ou menos importância e algumas donzelas”. E prossegue: “Depois de retirarem-se os cidadãos ignaros serviu-se cerveja aos padeiros que fizeram espírito até 10 da noite. Todos saíram então acompanhados de violinos, flauta e violão, e dirigiram-se em serenata ao Café Tristão onde tomaram café. Percorreram diversas ruas e chegaram afinal à Avenida Ferreira, onde cada qual tomou seu rumo. E foi assim que realizou-se a primeira fornada da Padaria Espiritual. Eu, Frivolino Catavento, que o digo, é porque o vi.”

E, só de imaginar, fico deliciada com a algazarra daquela alegre turba, nos tempos dos bondes puxados a burro e dos lampiões a gás, passeando pela então Praça do Ferreira, mesmo palco do cajueiro da mentira e da grande vaia ao sol, episódios que marcam o anedotário cearense (quem tiver interesse pode saber um pouco mais aqui ou ainda aqui.

O que desperta o riso em relação à Padaria é a contradição entre toda a sua aparente formalidade – estatuto regulador, edição e publicação de um órgão literário, reuniões com registro dos encontros, linguagem erudita – e o conteúdo informal e escrachado propriamente dito. Em ata, por exemplo, de 8 de junho de 1892, registra-se o seguinte:

“Oficiou-se à Empresa Telefônica pedindo para mandar colocar um aparelho telefônico, sem outra remuneração que não seja um sincero agradecimento”.

Em outro trecho do livro, aparece simplesmente o seguinte texto: “Por que ficou este espaço em branco? Você não sabe? Nem eu.”

Ou ainda a ata do dia 13 de junho de 1892, data de aniversário de Antônio Sales:

“Foi designado Lúcio Jaguar para dizer alguma cousa a respeito da vida de Moacir Jurema. Jaguar levantou-se e começou a falar. Sentindo porém alguma dificuldade de articulação começou a molhar a palavra de vez em quando, do que resultou ficar dentro em pouco fradescamente adormecido à borda da mesa, deixando a biografia em meio.”

Ao que segue a ata do dia seguinte ao natalício do padeiro fundador:

“Compareceram alguns padeiros, que nada fizeram por estar tudo em ressaca. Bem diz o ditado que quem vai à festa, três dias não presta.”

O livro de atas traz ainda a seguinte declaração, datada de 2 de julho de 1892: “Suando de vergonha e ralado de cruciantes remorsos, declaro que não me lembra de nada do que se passou na Padaria do dia 22 de junho a 2 de julho corrente. Que fiquem, pois, estes dez dias de vida da Padaria mergulhados na noite profunda do... meu tinteiro.”

Mas, neste ano de 2018, quando se celebram 120 anos de encerramento das atividades da Padaria Espiritual, o que realmente tocou meu coração naquele livro de atas foi o texto intitulado “À Posteridade”, assinado já em outra fase do grupo (27 de setembro de 1894), em que se pode ler: “Bem vede, Posteridade, que a Padaria está vivinha, bolindo, mais ativa e entusiástica do que sempre.”

Saí da Academia Cearense de Letras pensando no eterno e incessante ciclo vida e morte. E se este artigo parecer por demais “bairrista” ou “saudosista”, desculpo-me (para os de agora e os de depois) alegando que, enquanto eu me afastava do velho prédio, confirmava para mim mesma que o humor é mesmo condição humana e não privilégio de um época ou de um lugar. Enquanto eu descia as escadarias da Praça dos Leões, fiquei me lembrando dos exemplos da capital potiguar, por exemplo: do Zé Areia da Ribeira ao Cabrito do Beco da Lama, dos haicais fesceninos de Celso da Silveira ao jornal alternativo “Cebola Faz Chorar”, além de tantos outros que poderiam ser citados. Que bom me certificar disso: os de ontem e os de hoje, os daqui e os d´alhures, de algum modo, tod@s se irmanam por meio do riso. A certeza disso me dá uma espécie de consolo, uma sensação de regozijo, como o prazer de alguém que se refestelou em banquete farto de bom vinho.

E de nobre pão.

Outras referências:

http://www.uece.br/mahis/dmdocuments/padaria.pdf

http://www.fortalezanobre.com.br/2009/11/padaria-espiritual-1892-1898.html

http://www.academiacearensedeletras.org.br/revista/Colecao_Antonio_Sales/Antonio_Sales_e_Sua_Epoca/ACL_Antonio_Sales_Sua_Epoca_17_A_PADARIA_ESPIRITUAL_E_O_PAO.pdf

Leia outros textos da professora e escritora Cellina Muniz aqui

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