Para uma crise capitalista, uma saída coletiva
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Para uma crise capitalista, uma saída coletiva

8 de abril de 2020
Para uma crise capitalista, uma saída coletiva

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Em um artigo publicado na manhã desta quarta-feira (8) no jornal Folha de S. Paulo, a cientista política Flávia Biroli, da Universidade de Brasília, traz uma reflexão importante gerada a partir da crise financeira provocada pelo Coronavírus: a necessidade de transformar o modelo de nossa economia para um que contemple "a inevitável interdependência dos seres humanos".

A economia vigente acredita ser capaz de explicar nossa sociedade exclusivamente a partir dos modelos matemáticos e a linguagem originada a partir deles. Explico: na última terça-feira (7), as bolsas de valores europeias subiram pelo segundo dia consecutivo, e a bolsa de Nova York começa a neutralizar as quedas anteriores. Enquanto comemoram os primeiros momentos de estabilização após sucessivos circuit-breakers das semanas anteriores, administradores da cidade de Nova York consideram começar a enterrar os corpos das pessoas mortas pelo Coronavírus nos parques públicos. A estabilização ou melhora dos números, portanto, pouco ou nada têm a ver com um retrato real do que acontece na sociedade, que está longe de viver um momento "estável".

O assunto já havia sido abordado por Miriam Nobre e Nalu Farias, estudiosas do impacto do modelo econômico capitalista na vida das mulheres e ativistas da Sempreviva Organização Feminista, no livro "Economia Feminista" (SOF, 2002). No primeiro artigo do livro, assinado por Nobre, ela explica que "o universo de análise da economia dominante restringe-se a como se move o comércio, o governo e o mercado onde circula dinheiro."

De acordo com Nobre, nossa economia está centrada em um homem (no sentido literal), o homo economicus, que, de acordo com ela, não se trata de uma pessoa qualquer, mas um homem branco. Na prática, isso significa que as preferências e ações do nosso modelo econômico "podem até explicar o comportamento de um homem branco de 30 e poucos anos, detentor de capital, mas não de toda humanidade", afirma.

Isso acontece porque, diferente de um homem branco, de 30 e poucos anos e detentor do capital, que atua de forma isolada, como uma ilha, e que reforça a ideia de que responsabilidade está intrinsecamente ligada à independência, como é abordado por Flávia Biroli em seu artigo na Folha, a maior parte da humanidade precisa ser cuidada. Não somos uma ilha, dependemos uns dos outros para viver.

A crise financeira provocada pelo Coronavírus escancara as desigualdades do sistema, pois coloca na linha de frente para a morte àqueles que tiram em um dia de trabalho os recursos necessários para manter toda sua família naquele mesmo dia. Se não trabalha, não come. Se trabalha, adoece. Se adoece, pode morrer por falta de assistência. A pressa e a urgência desse indivíduo de trabalhar não acontecem por um desejo pessoal ou movido pelo amor ao trabalho, mas por necessidade de sobrevivência. É o caso de milhares de entregadores autônomos, motoristas de aplicativo, taxistas, feirantes, pescadores e tantas outras pessoas que atuam na informalidade, sem direitos ou garantias trabalhistas.

Um fato importante para o qual Miriam Nobre chama atenção é que as escolhas matemáticas são, também, políticas. A partir do momento que prioriza-se a alta da Bolsa de Valores em detrimento da garantia de direitos básicos às trabalhadoras e trabalhadores, faz-se uma opção por um modelo político-matemático, e não puramente matemático e imparcial, como se pretende dizer.

O momento, portanto, mais que um chamado à responsabilidade coletiva e à compreensão de que essa responsabilidade não está atrelada diretamente à nossa individualidade é, também, para rever os modelos político-matemáticos que regem nossas vidas e, diferente do que se pensa, não são imutáveis. O capitalismo não é inerente à sociedade, não é parte de uma "natureza humana". É um modelo econômico, como qualquer outro.

Temos, no mundo, várias iniciativas e modelos de sociedade que colocaram a coletividade como central para a continuidade da vida. Não me refiro aos modelos comunista empregados na China ou Cuba, mas iniciativas menores, como a das mulheres do assentamento Monte Alegre II, em Upanema, interior do Rio Grande do Norte.

Lá, a partir da construção de cisternas e de um sistema capaz de filtrar água construído pelas próprias mulheres, passou-se a plantar o ano inteiro em um lugar que há anos vivia em rodízios de água. A tecnologia foi aplicada aos quintais produtivos das mulheres, que trocam as mercadorias com as vizinhas e amigas, complementando a mesa uma da outra com aquilo que produzem e garantindo alimento onde comer sempre foi uma dificuldade. As mulheres passaram a anotar o valor daquilo que produziam diariamente para a economia doméstica, e perceberam a centralidade do seu trabalho para a manutenção da vida - e não é esse o nosso objetivo enquanto sociedade? Garantir a manutenção da vida?

São tempos de mudança: tempos de colocar no centro da discussão a importância e o valor do trabalho doméstico, de descobrir alternativas para sobreviver em meio à crise do modelo econômico vigente, tempos de demissões em massa e de muita dor para àqueles que já estão perdendo seus entes próximos. Que isso nos sirva de motor para questionar a imparcialidade e a objetividade daquilo que sempre foi tido como absoluto mas que, como tudo na vida, está sujeito à mudança dos tempos e organização das vozes: é hora de colocar a manutenção da vida como central também na elaboração de nossos modelos político-matemáticos.

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