Pelo quê vamos colocar nossa mão no fogo?
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Pelo quê vamos colocar nossa mão no fogo?

8 de setembro de 2018
Pelo quê vamos colocar nossa mão no fogo?

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200 anos...
Do dia pra noite. Da noite pro dia.
Parece rápido demais, mas não foi.
Por muitas vezes a tragédia se anuncia
antes de virar acontecimento!

Um país que se incendeia. Na noite do último domingo (02 de setembro de 2018) o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, foi destruído por um incêndio que deixou apenas 10% de seu acervo preservado.

Enfrentando desgaste ao longo do tempo sem a manutenção devida, o Museu (que completa em 2018 seus 200 anos) já tinha dado vários sinais de sua tragédia. Pedidos de investimentos e denúncias iam e vinham sem resposta rápida ou eficaz para evitar o que fez o Brasil se lamentar.

Como resultado da precarização das Universidades Públicas, das políticas de austeridade para a educação, ciência e cultura e da total ausência de respeito ao patrimônio arquitetônico e histórico de nosso país, nos incendiamos de indignação.

Mas não é apenas pelo Museu Nacional que o Brasil vem acendendo incêndios e tentando aplacá-los. Muitos episódios de destruição e retrocesso jogam no lixo nossa memória, nossas conquistas democráticas e nosso senso cívico.

Aqui, todas as metáforas incendiárias se aplicam. O Brasil está “pegando fogo” desde o processo de impeachment da presidente Dilma em 2016, com os variados sobressaltos que nossa democracia vem sofrendo. A cada episódio um debate “se acende” e começa o “fogo cruzado” entre direita e esquerda, conservadores e progressistas, ditadores e democratas, liberais e comunistas.

Lamento imensamente o que aconteceu com o Museu e devemos tomar esse exemplo para aumentar a proporção de nossa indignação, ampliar o horizonte de nossa análise e expandir os limites de nossa atitude.

Nossa indignação não deve se deter às grandes tragédias, catástrofes episódicas que produzem o apagamento do drama cotidiano que nos leva a esse estado de coisas. Nossa análise há de contemplar as condições que tornaram o inaceitável possível, reunindo as evidências que explicam porque, em nosso país, cultura, ciência e educação não são tratadas com o seu devido merecimento. Nossa atitude não pode se resumir a uma “militância de sofá” ou a análises rasas sobre quem é “o culpado” dessa desgraça.

Dando passos atrás e além, podemos pensar que estamos num contexto no qual há de se discutir o projeto de sociedade, de país e de democracia que queremos. Refletir sobre como nossas instituições falharam se esses (cultura, ciência, memória e arte) são interesses tão relevantes para nossa população.

Onde está o “ruído” dessa comunicação entre o que nós queremos e o que eles praticam?

Estamos assistindo nossos “representantes” tomar decisões, muitas delas incompatíveis com o paradigma que abraçamos. Um paradigma de garantia das liberdades, de respeito à diversidade, de acesso às oportunidades.

Democracia também é isso. Não foi apenas o Museu Nacional que pegou fogo. É muito “inflamável” e plena de perigos a retração de direitos promovida pelo nosso Legislativo, os cortes orçamentários em áreas essenciais encampados pelo Executivo e as decisões à moda “tá errado, mas tá na lei” ou “tá na lei, mas tá errado” tomadas pelo Judiciário, a depender da parte que a ele recorra.

É necessário politizar a discussão para democratizar a política. Essa política que decide sobre nossas vidas, que legisla sobre nossos interesses e que influencia na aplicação e garantia de nossos direitos.

Falando em garantia de direitos, alguns exemplos reunidos nos últimos dias revelam a “prova de fogo” a que se submete nossa democracia em âmbito judicial: i) votação dos Ministros do STF favorável ao aumento de seus próprios salários; ii) entendimento da Corte Superior de que a terceirização das atividades finalísticas em empresas não precariza as relações de trabalho; e iii) decisão do TSE por não cumprir liminar do Comitê de Direitos Humanos da ONU.

Nesse mesmo período, faíscas iam se acendendo em nosso esquecido Museu. Com abundância em madeira, papéis e palha, mas escassez de verba, pessoal e fiscalização, definha(va) nossa ciência, cultura e memória... mais um incêndio se anunciava.

E o que isso tem a ver com nosso propósito nesse artigo? Ora, tudo isso nos leva a pensar sobre como os poderes vêm sendo exercidos e de que modo podemos nos implicar nisso.

É importante lembrar que o poder não deixa espaços vazios. Se não o exercemos, outros o farão em nosso lugar. Aliás, é na política que se disputam os espaços e instrumentos mais representativos do poder (ao menos do macropoder), essa força que pode ser benéfica ou maléfica, a depender dos propósitos e da forma como é operada. Assim, do mesmo modo como ocorre com a Política, o poder não é necessariamente bom ou ruim. Contudo, ele possui seus matizes.

Esse poder pode ser exercido com base na força ou com base em fundamentos de autoridade. No primeiro caso, ele impõe nossa obediência pela ameaça do uso de uma mão pesada e implacável a nos castigar. Ao se fundar na autoridade, adquire um atributo legitimador, pois apenas por intermédio da autoridade que se obtém o consenso. Ao termos o maior número possível de pessoas de acordo com determinadas decisões, estamos diante de um consenso em torno de fundamentos ou ideias capazes nos unir.

Também podemos distinguir o poder em sua forma real e formal. Numa experiência democrática, o povo exerce o poder real e o Estado, com suas instituições, símbolos e burocracia, exerce o poder formal. Mas esse poder real também pode estar associado às forças econômicas, ao domínio financeiro ou às influências culturais que operam na sociedade.

Ou seja, o poder real é aquele que, de fato, atua com prestígio no jogo de forças sociais, influenciando o poder formal. É através da utilização de recursos ou de estruturas formais de controle (como o Legislativo, o Judiciário, o Executivo ou as Forças Armadas) que o poder real buscará sua sustentação e permanência. Por isso, a disputa por cargos eletivos expõe toda sorte de concorrência, seja ela honesta ou desonesta, por ser uma das vias de acesso e exercício desse controle/poder formal.

Considerando que em uma sociedade sempre existem interesses em conflito, pode-se entender o Direito como a expressão normativa que busca suavizar os enfrentamentos e tensões decorrentes das forças sociais em disputa. Mediante o Direito, o poder formal adquire respaldo e assume, ideologicamente, a representação da ordem e do interesse de todos, muito embora esteja (ou possa estar) a serviço de outros interesses e que, por isso, não podem ser assumidos.

De tal modo, vale dizer que o poder formal é um locus de ambiguidade, pois nesse lugar as contradições se tornam visíveis e nítidas, revelando que ele muitas vezes age representando interesses que não devem ou não podem aparecer. Enfim, por muitas vezes esse poder formal atua demonstrando algo que não é (AGUIAR, 1990, p. 56).

Se isso está lhe parecendo familiar, este é o momento oportuno para retomar o questionamento sobre onde está o ruído de comunicação ou a desarmonia de interesses entre nós (poder real) e as instituições (poder formal). Assim, em vez de se perder em sua cortina de fumaça, é por demais pertinente analisar o combustível desse incêndio que toma conta do Brasil.

Para que o poder formal se mantenha, cabe-lhe resolver qualquer problema de inadequação com os interesses do poder real, o que pode se dar mediante a adaptação de normas jurídicas. Contudo, quando as forças deste poder formal não são capazes de solver tal inadequação, pode ocorrer sua queda e substituição por outro que traduza os interesses do grupo social de sustentação (poder real).

Assim, é possível relacionar assuntos como democracia, processo eleitoral, normas jurídicas, instituições estatais e exercício de poder quando queremos fazer dissipar essa nuvem de fumaça que não nos permite ver um palmo diante do nariz.

Fazendo uma boa síntese, tudo isso está em pauta quando nos lançamos a uma reflexão sobre os nossos direitos, pois nesse ato refletimos sobre a possibilidade de se ver implantar essa ou aquela determinada ordem social. Noutras palavras, aquele que detém o poder formal, detém a legitimidade e autoridade para fixar as normas que regulam nossa sociedade, inclusive aquelas que fixam a quantidade de recursos e o destino das verbas em nosso país. Que fixam nossos direitos como trabalhadores/as da iniciativa privada ou nosso estatuto no serviço público. Que determinam se podemos ir e vir sem medo de sofrer agressão ou violência por sermos mulheres, negras/os, LGBT ou de periferia. Que definem se podemos contar com o Estado para projetar nossa velhice ou se vamos trabalhar incansavelmente até perdermos as forças e a saúde. Enfim, definem se teremos acesso à educação, cultura, lazer e informação num contexto democrático de oportunidades, ou se os bens culturais, sociais, materiais e simbólicos serão privilégio de poucos.

E aí? Já pensou sobre isso? Quer mudar as coisas? Quer se implicar mais no seu/nosso passado, presente e futuro?

Se não, provavelmente está com receio de “se queimar” nesse universo “devassado” que é a política. Se sim, assuma seu protagonismo, faça Política com “p” maiúsculo e vá pensando nas eleições que vão definir nossos representantes para os próximos anos. Enfim, responda para si mesma/o: sobre o quê e por quem irei colocar minha “mão no fogo”?

1. AGUIAR, Roberto. A. R. de. Direito, Poder e Opressão. São Paulo: Alfa-Omega, 1990.

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