Percepções e realidade sobre o funcionalismo
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Percepções e realidade sobre o funcionalismo

13 de agosto de 2020
Percepções e realidade sobre o funcionalismo

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Em fevereiro deste ano teve grande repercussão a fala do ministro da Economia, Paulo Guedes, quando tomou emprestado o nome do filme sul-coreano vencedor do Oscar para expressar a sua visão sobre o funcionalismo público. Tentando convencer uma plateia no Rio de Janeiro da necessidade de uma reforma administrativa – cuja proposta acabou suspensa devido à pandemia – o posto Ipiranga repetiu o chavão do país quebrado, criticou os reajustes salariais dos servidores e disparou: “a população não quer isso”[2].

Recentemente, o ataque aos serviços públicos voltou à pauta midiática no telejornal de maior audiência do país, que veiculou uma peça (chamada de estudo) produzida por um instituto de pensamento liberal-conservador em defesa da reforma administrativa[3]. Sem qualquer contraponto crítico, foi dito que o Brasil gasta mais com funcionalismo público do que com saúde e educação juntos, quando na realidade grande parte dos servidores está empregada justamente nas atividades finalísticas dessas duas áreas! Para os estudiosos, é como se os salários de médicos, professores, etc. fossem um fardo que impedisse os investimentos em infraestrutura física – como se estes não precisassem ser combinados com despesas de custeio e pessoal para servir a população.

Tanto a distorção acima, com puro propósito de construir uma narrativa propagandista, como a fala do ministro Guedes, encontram eco em camadas da sociedade que podem até não precisar da oferta pública de alguns serviços básicos, mas que a despeito da visão rasteira e desvirtuada sobre os servidores, são direta ou indiretamente beneficiadas por 11,4 milhões de pessoas que somam 17% dos vínculos trabalhistas do país. Em tempos de pensamento terraplanista e anticientífico, nunca é demais olhar para a realidade dos dados.

No seu novo livro[4], que discute as diferentes funções do Estado no contexto da crise sanitária, a economista Laura Carvalho faz referência a uma didática matéria[5] publicada na revista Piauí sobre o perfil e as remunerações do serviço público brasileiro, elaborada a partir de dados do IPEA, IBGE e Banco Mundial[6]. Em linhas gerais, temos o seguinte retrato: no universo de servidores em todas as esferas e poderes, metade ganhou menos de R$ 2,9 mil de salário bruto em 2018; um terço é composto por professores (22%) e profissionais de saúde (11%); do total de funcionários públicos, 57% estão empregados no nível municipal (apenas 10% no federal); o poder Judiciário tem as mais altas remunerações.

As estatísticas revelam que o grosso do funcionalismo está longe de desfrutar de salários exorbitantes e não destoa dos seus pares no setor privado. Pelo contrário, metade ganha até três salários mínimos e atua em serviços essenciais cuja prestação abrangente é fundamental para mitigar desigualdades sociais. Por exemplo, a quantidade de profissionais das áreas de educação e saúde apenas na esfera municipal é mais que o dobro de todos os servidores públicos federais, de todas as áreas. Sem esses trabalhadores é impossível viabilizar o funcionamento de escolas, postos de saúde, etc, para quem mais precisa.

Outro ponto atacado pelo senso comum é o suposto inchaço da máquina pública, que não se verifica nos dados. Em estudo[7] recente, os pesquisadores Félix Lopez e José Celso Cardoso Jr. identificam que a proporção de funcionários públicos no Brasil em relação à população é de 5,6%; isto é ligeiramente superior à média da América Latina (4,4%) e inferior à média dos países ricos da OCDE, perto de 10%. Ademais, os autores apontam que entre 2006-2017 a despesa anual com servidores ativos ficou praticamente estável em relação ao PIB, chegando próximo de 11% ao final da série. Isso quer dizer que o peso relativo do funcionalismo não aumentou nesses 11 anos. É normal (e necessário) que um país com pretensões de se desenvolver construa uma burocracia estatal e tenha um quadro profissional voltado a atender os direitos sociais previstos na Constituição.

É claro que o assunto é complexo, cheio de nuances, e não se esgota neste curto texto. Sem querer cansar o leitor com mais dados (pode-se consultar os estudos citados), cabe pontuar mais um aspecto comumente desconsiderado na narrativa dominante. Se, por um lado, o pagamento dos servidores públicos viabiliza a prestação de serviços essenciais, por outro, oxigena o sistema com renda contribuindo para estabilizar o nível de atividade econômica. Como fonte de demanda, os salários geram efeitos multiplicadores sobre o consumo, pois o gasto de um indivíduo é a renda de outro; ao final, parte dos recursos volta para o governo na forma de impostos. Não é difícil perceber que o comércio local de algumas cidades dificilmente sobreviveria sem a folha de pagamento dos servidores públicos, responsável por um fluxo circular de produção e emprego via consumo.

O que foi dito aqui não exclui a necessidade de combater os privilégios existentes nas elites do funcionalismo, que em função do poder político acumulado têm conseguido manter vantagens que extrapolam e muito o teto salarial do setor público. Será que estes privilégios pretendem ser questionados na reforma administrativa? Parece que não, pois no fundo esse tipo de reforma vem com o rótulo de corrigir distorções, aumentar a eficiência, etc., mas na prática o seu resultado tende a ser o sucateamento dos serviços públicos visando à abertura de novos mercados para a iniciativa privada.

Cabe então um olhar crítico para as narrativas que vão sendo construídas no debate público, principalmente quando focam apenas no corte dos gastos e nada dizem sobre a sua finalidade social. Assim foi maliciosamente pautado o debate da reforma da previdência, em torno da “economia” de R$ 1 trilhão em 10 anos almejada pelo governo, enquanto o papel da seguridade social e os efeitos adversos da redução dos benefícios foram obscurecidos.

É dever dos economistas lutar por desenvolvimento e justiça social. 13 de agosto: dia do economista!

Breno Roos é economista, Doutor pela UFRJ. Membro do Grupo de Economia Política do Desenvolvimento (GEPD) da UFRN.

[2] https://www.youtube.com/watch?v=f8QqCWDSvcY

[3] https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/08/10/governo-gastou-tres-vezes-mais-com-salarios-de-servidores-do-que-com-saude-diz-estudo.ghtml

[4] Curto-circuito: o vírus e a volta do Estado (Todavia, 2020).

[5] https://piaui.folha.uol.com.br/quem-ganha-mais-no-servico-publico

[6] Atlas do Estado Brasileiro (IPEA); Relação Anual de Informações Sociais (RAIS/IBGE); Gestão de pessoas e folha de pagamentos no setor público brasileiro: o que os dados dizem? (Banco Mundial).

[7] Cadernos da Reforma Administrativa nº 4 (Fonacate, 2020).

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