Por que há tão poucos jornalistas negros trabalhando na imprensa potiguar
Natal, RN 24 de abr 2024

Por que há tão poucos jornalistas negros trabalhando na imprensa potiguar

2 de dezembro de 2018
Por que há tão poucos jornalistas negros trabalhando na imprensa potiguar

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Embora 55,7% da população brasileira se autodeclare preta ou parda, são poucos os jornalistas negros em atividade no país. É provável que esse cenário tenha origem no acesso ainda restrito às universidades da comunidade negra, o que é agravado no mercado de trabalho. Com o sistema de cotas – voltado para alunos de escola pública, considerando ainda etnias, com vagas para pessoas que se autodeclaram negras, pardas ou indígenas – as salas de aula estão mais diversas. No entanto, nas redações dos veículos de comunicação as portas nem sempre se abrem para esse público.

Em 2018, se autodeclararam negros apenas oito dos 295 estudantes ativos nos cursos de Jornalismo e Comunicação Social com habilitação em Jornalismo na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Isso significa que, atualmente, apenas 2,71% dos futuros jornalistas que estudam na UFRN se reconhecem como negros. Para fins de cálculo do censo, o IBGE considera negras as pessoas de cor preta e parda.

Em toda a UFRN, os dados demonstram crescimento contínuo de negros e negras. Atualmente, são 557. Em 2017, eram 494. E em 2016, o número de estudantes que se autodeclaram negros foi 317. De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral divulgada no 3º trimestre de 2018, a população no Rio Grande do Norte autodeclarada negra soma 2.258.000 pessoas. Somente em Natal (RN) são 524 mil, ou 23,2% num comparativo com o todo o Estado.

O jornalista Cláudio Oliveira só se deu conta de que era o único negro da sua turma na faculdade durante a colação de grau, em março de 2011, quando uma professora que participava da cerimônia chamou atenção para a disparidade.

Em 2006, quando ingressou na UFRN, ainda não existiam cotas raciais ou sociais. O que vigorava era o Argumento de Inclusão, um sistema de pontuação adicional, diferenciado, que tomava como referência critérios sócio-econômicos e de desempenho dos candidatos da rede pública no vestibular.

Mas Cláudio lembra que não teve direito a participar dessa primeira política de inclusão porque havia concluído o ensino médio um ano antes de 2003, data limite estabelecida.

Antes de a gente pensar no jornalista negro nas redações precisa pensar neles dentro da faculdade. A gente sabe que, por questões históricas que levam o negro à margem da sociedade nas camadas mais pobres, consequentemente, o nosso ingresso no ensino superior é dificultado”.

Natural de São José de Mipibu, ele confirma que o negro está à margem da sociedade quando diz ser do subúrbio da Grande Natal e que na escola pública onde estudou em 2002 não existia a cultura de ir para a faculdade ao concluir o ensino médio.

Em 2016, no contexto da estudante Milka Moura, de 20 anos, também não havia a cultura de dar continuidade aos estudos. Ela é a primeira da família a cursar Ensino Superior. “Minha avó é mulher negra analfabeta, minhas tias trabalharam em casa de família, meu pai não terminou o Ensino Médio, minha mãe não terminou o Fundamental”, contextualiza.

Milka Moura, de 20 anos, é a primeira de sua família a entrar na faculdade.

Milka conta outras quatro pessoas negras na turma do 4º período e considera um ato de resistência estar ali, em um curso de Jornalismo de uma universidade pública.

“Reclamam muito das cotas para negros, mas a gente vê o quanto é necessário, porque mesmo com isso não tem grande número de pessoas negras. Eu não consigo enxergar, principalmente nos cursos de Comunicação”, diz.

A coordenadora do curso de Jornalismo, professora Kênia Maia confirma o crescimento desse público:

“Nos últimos anos houve uma diferença gritante. A sala é muito mais colorida e socialmente diversa com as leis de cotas. Se antes a cada turma tinha um negro, hoje tem quatro negros. De 10% a 15% são negros. É alguma mudança”, ressalta Kênia Maia, lembrando que nem sempre o mercado de trabalho vai absorver esses novos profissionais – o que lamenta, porque acredita que, chegando às redações, eles aumentam a possibilidade de tratar de assuntos relativos à diversidade.

“O que hoje é cultura? Esse negócio de ‘bairro nobre’ é algo extremamente segregador, por exemplo. O que hoje tem nos cadernos de cultura? Astros e espetáculos, uma concepção muito elitista do que seja cultura, deixando de lado várias manifestações culturais que seriam de outras populações”, reclama, lembrando que é goiana e está há 15 anos no Nordeste, mas somente há pouco tempo conheceu a Jurema, uma religião que nasceu desse lado do país.

Mercado de Trabalho: 3,7% das bancadas de telejornais têm apresentadores negros

Ednaldo Martins é negro e apresentador de telejornal desde 2014. A exceção se dá na TV Universitária da UFRN.  Ednaldo sabe que sua presença é importante e estimula outras pessoas a ocuparem novos espaços.

A Revista Vaidapé fez um levantamento do número de negros nas bancadas nacionais, entre o segundo semestre de 2016 e o primeiro de 2017, e chegou a um percentual de 3,7%.  Foram apenas 10 apresentadores negros contra 261 brancos. Sete emissoras foram consultadas: Cultura, SBT, Rede Globo, Rede Record, RedeTV!, Gazeta e Band.

“Eu vi que a minha ida para a bancada poderia estimular muitos negros, que muitas vezes pensam que são incapazes. Lógico que isso acontece em um contexto complicado, em que não existem referências. Hoje qual a referência que a gente tem no Jornalismo? Aqui, localmente, não tinha”, disse o profissional, que é também locutor na Rádio Universitária.

O convite para ser âncora foi da então superintendente de Comunicação da Agecom Josimey Costa. Ednaldo está na FM Universitária há 17 anos e trabalhou outros 12 anos na InterTV, filiada da Rede Globo – à época, Cabugi –  como coordenador de programação, sempre por trás das câmeras.

A voz precisa e pausada de Ednaldo chama atenção pelo tom grave. Ele diz que isso o “beneficiou” na carreira iniciada como locutor. “A questão é com a cor. E a cor não aparece no rádio”, sentencia, lembrando dois episódios em foi alvo de abordagem truculenta de policiais apenas pelo fato estar dirigindo um carro novo.

Apesar de se dizer profissional de rádio, Ednaldo conta que aceitou o desafio de ser apresentador com entusiasmo, ainda mais por se tratar de uma rede universitária, que tem perfil de escola e sempre serviu como vitrine no mercado jornalístico.

“É importante que a televisão seja um retrato da sociedade, que a gente se enxergue, inclusive que tenha mulheres, homossexuais. Se não, ela não representa a sociedade, mas sim o interesse de alguém que acha que só tem competência quem é branco, quem é magro. Temos que quebrar esses paradigmas ultrapassados”.

Para quebrar esses preconceitos, o jornalismo tem papel fundamental. Na opinião do jornalista Paulo Nascimento, que trabalhou na Tribuna do Norte, Novo Jornal e hoje está na assessoria de Comunicação do Governo, a baixa representatividade dos negros na construção das notícias contribui para que o debate sobre racismo seja praticamente nulo na imprensa local.

Ele cita o caso da criança "fantasiada" de escravo para a festa de Halloween do CEI. “O fato esfriou tão rápido quanto esquentou. Foi pauta um dia, dois e só. Nada além disso. Hoje mesmo, do que eu vi de jornais, portais e TV, nenhuma citação ao Dia da Consciência Negra, nem que fosse para registrar a efeméride”.

O que acontece, segundo Paulo Nascimento, é que a as redações potiguares repetem um padrão existente em todo o mercado de trabalho que exige formação universitária.

“Não são nem um pouco condizentes com a formação social. São poucos negros que raramente ocupam posição de destaque ou de chefia, seja em jornal, assessoria, TV, etc. E esse quadro já vem dos bancos da faculdade, onde já somos poucos alunos e quase nenhum professor ou professora”.

Daísa Alves lembra jornalistas negras com destaque nacional.

O problema é ainda maior quando se trata de mulheres negras. Elas sempre estiveram em número inferior ao de homens negros na universidade. Em 2017, ingressaram com cotas na UFRN 650 mulheres e 998 homens.

A jornalista potiguar Daísa Alves é uma das poucas que estão no mercado. “Lembro de algumas referências em TV, como Glória Maria, e uma âncora da TV Brasil, Luciana Barreto. Mas, realmente, é muito baixa a taxa de representatividade”, comenta a assessora de imprensa.

Gerson de Castro, experiência em cargos de chefia

Trinta e quatro dos 55 anos de Gerson de Castro foram dedicados ao Jornalismo. Há quatro anos é gerente de rádio e TV da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte. Passou pelos jornais Diário de Natal, Tribuna do Norte e foi correspondente do O Estado de S. Paulo. Gerson se reconhece negro com orgulho, mas diz que não milita, apesar de reconhecer as dificuldades dos seus.

Tenho consciência da minha origem, da minha cor, tenho apreço e orgulho, mas nunca fui militante, nunca coloquei em qualquer parte da minha vida a questão da cor negra como algo determinante pra exercer a profissão, para pleitear avanços ou coisa parecida”.

Nasceu em Tangará, mas cresceu no bairro das Quintas, em Natal. Passou por três escolas públicas “felizmente de qualidade”: Felizardo Moura, Winston Churchill, Atheneu. E viu na educação uma forma de ascensão social.

“Fui o primeiro da minha família a ter um título universitário, de nove irmãos. Toda essa bagagem levei para a minha vida profissional”, disse, ao ressaltar que “Jornalismo deve ser pautado pela responsabilidade social”.

Para Gerson de Castro, a mídia tem o dever de contribuir para o avanço da sociedade. “Não basta informar, precisa contribuir para a formação da cidadania. Não sei se isso hoje parece muito romântico, mas foi o que me guiou a vida inteira”, destacou, lembrando que já recebeu homenagens do Centro Popular de Direitos Humanos e prêmio do Instituto Ayrton Sena, por trabalho realizado no Diário de Natal em equipe que contava com a jornalista Simone Silva, também negra.

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