Agressão a indígenas em cidade do RN “fundada” pelo povo Tapuia Paiacu reforça importância da vacinação de povos originários
Natal, RN 26 de abr 2024

Agressão a indígenas em cidade do RN “fundada” pelo povo Tapuia Paiacu reforça importância da vacinação de povos originários

8 de abril de 2021
Agressão a indígenas em cidade do RN “fundada” pelo povo Tapuia Paiacu reforça importância da vacinação de povos originários

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No município de Apodi, a 341 km de Natal, o vereador Charton Rego (MDB) usou o espaço da sessão ordinária do último dia 1º de abril para criticar a logística de vacinação na cidade. O parlamentar disse que era uma “vergonha” que pessoas autodeclaradas indígenas, agremiadas como tal em sindicato e listadas pela Funai, estivessem tendo prioridade na imunização.

“O plano de vacinação do Governo Federal é para índios aldeados, e nós estamos vendo no município de Apodi pessoas alegando porque estão lá no cadastro da FUNAI, o direito da vacina, porque a senhora Governadora foi reivindicar lá, ao Governo Federal, né? [...] mas na dança tá indo todo mundo, todo mundo. Todo mundo que tem cadastro [como índigena], que não sabe nem fazer uma dança da chuva [está sendo vacinado]”, reclamou o emedebista durante sessão virtual da Câmara Municipal de Apodi.

Em resposta, Lucia Paiacu Tabajara, Presidenta do Centro Histórico Cultural Tapuias Paiacus da Lagoa do Apodi, enviou uma nota de repúdio à fala do vereador alegando que ele demonstra desconhecimento sobre a formação do município e usa o espaço que dispõe para propagar preconceito contra os povos indígenas.

“[...] é bem triste tamanho espetáculo de preconceito e ignorância por parte de um parlamentar que deveria possuir noções históricas e culturais sobre a população indígena. Essa visão dos índios como seres distantes da civilização e sem nenhum tipo de acesso a cultura contemporânea é de uma completa irresponsabilidade e também ignorância, pois o acesso a cidade é garantido por lei a todos os cidadãos”, rebateu Lucia em nota.

Após manifestação da representante indígena, o parlamentar publicou um vídeo no Instagram onde repudia a nota de repúdio emitida por Lúcia Paiacu. Nele, o vereador alega que se referia a "certos índios", pessoas não-aldeadas que poderiam dar lugar a vacinação de deficientes físicos, por exemplo. 

"Nós não concordamos que no lugar de estar sendo vacinado certos índios e não os povos indígenas, porque eu defendo a vacinação para os indígenas aldeados, os indígenas com comorbidade, para os indígenas deficientes, certo? Eu defendo", rebateu Rêgo.

Ele continua a manifestação afirmando que não é preconceituoso, já que destinou verba parlamentar de R$ 5 mil para ajudar na construção do museu indígena no município, além de defender o ensino da história de formação da cidade na educação básica.

Á agência Saiba Mais, Charton Rêgo disse que faltou uma triagem para verificar quem seriam "os verdadeiros indígenas" de Apodi, e assim poder vaciná-los primeiro. Ele diz ser favorável sim à prioridade para povos originários, desde que estes sejam aldeados.

"[...] a política adotada em Apodi não teve o cuidado de triar para não colocar em xeque a comunidade. Não os indígenas, "certos índios". São jovens, saudáveis, não são aldeados, alguns funcionários públicos com posses (carro, casa), não possuem comorbidades", disse o vereador. Segundo Rêgo, sem a adoção de critérios de prioridade, alguns autodeclarados indígenas poderiam estar se aproveitando para "burlar o sistema" e receber a vacina.

"No caso de Apodi, onde não há índios aldeados, considerar critérios de prioridades como comorbidades, idade... Porquê vacinar um sujeito que se diz índio, e não vive nas condições de índio e ainda por cima não se enquadra nos critérios de prioridades? Apenas porque se diz índio? Em Apodi, sou a favor de apenas pessoas realmente índios, receberem a prioridade", defende.

A discussão continua e Lúcia Paiacu enviou uma carta legislativa à Câmara, no último dia 5, onde pede que o documento seja lido para os parlamentares. Na carta, ela detalha a história da formação do município, traz um documento histórico que trata sobre a expulsão de aldeados da terra e explica que se os povos tradicionais do município hoje não ocupam um território deles, isso é fruto de uma política de Estado que visava dizimar as etnias:

"O povo Tapuia Paiacu do Apodi não vive em aldeia (de forma tradicionalmente compreendida), não por vontade própria, mas, porque todo o povo foi expulso, alguns mortos e outros transferidos, massacrados, desaldeados e nas suas terras construída a vila que hoje é a cidade que vivemos. Em síntese, Apodi surge de uma aldeia e na sua formação social há evidências culturais muito fortes da existência do povo indígena", diz a carta que apresenta uma certidão emitida no ano de 1688 e assinada em 1704 por um dos padres jesuítas da missão instaurada na Ribeira do Apodi, onde é registrada a presença de índios na chamada Lagoa do Podi (nome da época) e o plano de desaldeamento dos Paiacu das terras.

Movimento indígena de Apodi apresenta certidão que atesta existência de povos Paiacu na região antes da fundação do município. Foto: Cedida

Lúcia Paiacu classificou a fala do parlamentar na Câmara como uma "aberração" e lembra que indígenas são reconhecidos a partir da autodeclaração.

A própria Funai (Fundação Nacional do Índio) indica que não cabe ao Estado reconhecer quem é ou não indígena, e os critérios adotados se baseiam na Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, promulgada integralmente no Brasil pelo Decreto nº 5.051/2004, e no Estatuto do Índio (Lei 6.001/73).

A Convenção estabelece como indígenas aqueles se autodeclaram, tendo consciência de identidade indígena e que também são reconhecidos pelo grupo de origem.

Dessa forma, as 60 famílias Tapuia Paiacu, cerca de 120 pessoas, que receberam a primeira dose da imunização contra a Covid-19 tiveram direito ao acesso.

Por quê indígenas são prioridade?

De acordo com a Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), em agosto de 2020 um consultoria da organização junto a Fiocruz, levada ao Supremo Tribunal Federal como Arguição por Descumprimento de Preceito Fundamental 709 (ADPF 709), indicou que povos indígenas são prioridade na vacinação contra a Covid-19 pelo Programa Nacional de Imunização.

Isso ocorre porque representantes de povos originários "seriam potencialmente mais vulneráveis a Covid-19, decorrente das dificuldades de acesso a serviços de saúde e pela falta de garantia das condições necessárias para isolamento social e de medidas preventivas, além da existência de indicadores de saúde".

Dessa forma, a decisão do Governo Federal em vacinar primeiro somente indígenas aldeados e atendidos pelo Subsistema de Atenção à Saúde Indígena contraria evidências de que esses povos, tanto em contexto urbano quanto rural, são mais suscetíveis ao risco de infecção e na evolução para formas graves e óbitos.

"Estudos que focam nos impactos da pandemia têm mostrado que as taxas de mortalidade por Covid-19 são progressivamente mais elevadas nas faixas etárias a partir dos 50 anos nos indígenas em comparação à população geral (Fiocruz, 2020: 16)7. Foi verificada também a maior letalidade em internações hospitalares de indígenas em comparação às demais categorias de cor/raça em praticamente todas as faixas etárias (Ranzani et al, 2021)8."

A antropóloga Jussara Galhardo, coordenadora do Grupo Paraípaba de estudos da questão indígena no Rio Grande do Norte explica que essas populações representam um percentual pequeno da população, apenas 0,5% são indígenas reconhecidos. Isso ocorre, de acordo com a pesquisadora, ao quadro de dizimação étnica ocorrido ao longo dos séculos.

De acordo com dados do IBGE, a população reconhecidamente indígena no Rio Grande do Norte corresponderia, até 2010, ao total de 2.597 pessoas, o que colocava o estado com o menor percentual de população nativa do país (0,42%).

Levantamento da Articulação dos Povos Indígenas do Rio Grande do Norte (Apirn) estima que o estado possui 16 comunidades dos povos originários das etnias Potiguara, Tapuia Paiacu, Tarairiú, Janduís e Caboclos. Todavia, porém nenhuma dessas comunidades tem territórios demarcados e reconhecidos pela União.

"Não é a primeira vez que o indígena sofre com essas enfermidades transmitidas por vírus. Populações indígenas foram dizimadas por causa da varíola, da tuberculose e de outras doenças. Esse foi mais um vírus veio ameaçar a população indígena que já está bem reduzida", lembra Galhardo.

Além disso, outra característica que torna essas populações mais vulneráveis é o fato de viverem em agrupamentos, mesmo em áreas urbanas. Comportamento que também provoca maior possibilidade de contaminação por doenças infectocontagiosas. Galhardo defende ainda que a prioridade a esses populações também diz respeito a manutenção da riqueza cultural do país, já que povos originários têm línguas e costumes próprios mantidos por milênios.

"Nós temos no Brasil atualmente 896 mil indígenas. Acredito que esse número seja maior, mas no geral é essa totalidade que se demonstra. Porque não se conta ainda com os índios que são isolados, que ainda existem, embora ameaçados. E são 274 línguas indígenas, diferentes, instaladas no país. Portanto, é um país multicultural, pluricultural, de um patrimônio riquíssimo", conclui a pesquisadora.

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