Por que não derrubamos estátuas também ?
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Por que não derrubamos estátuas também ?

19 de junho de 2020
Por que não derrubamos estátuas também ?

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A derrubada deliberada de estátuas, a substituição de monumentos, a destruição de obras de arte e o abandono de prédios à ruína obedece a interesses religiosos e políticos desde a Idade Média como uma prática “iconoclasta” (destruição de imagens) ocorrido no Império Bizantino (séc. VIII-IX d. C). Substituir um objeto de culto por outro ou mesmo por nenhum outro é uma prática comprovada pela literatura e pelos livros de história há séculos.

O historiador francês Dominique Poulot analisa que os padres e intelectuais europeus se incomodavam muito com o abandono dos monumentos à própria sorte – inclusive à sorte dos revezes políticos – e o interesse pelas heranças do passado teriam, de fato, transformado a sociedade europeia moderna numa sociedade mais preocupada com a proteção do patrimônio histórico e artístico.

Mesmo assim, no período da Revolução Francesa (1789-1799), ninguém conseguiu impedir a tomada e posterior destruição da Bastilha, prédio construído no período medieval que posteriormente seria utilizado como prisão política dos revolucionários. A própria Bastilha foi um edifício erigido em tempos de intenso nacionalismo francês, diante do avanço inglês, na luta pelo poder no continente europeu.

A destruição da Bastilha e a libertação dos revolucionários foi um movimento popular inevitável que, curiosamente, criou novos símbolos imponderáveis para a história francesa: alguns pedaços de materiais da Bastilha foram transformados em mercadoria e vendidos para as autoridades públicas como souvenir (lembranças). E o mais importante de tudo, quando pessoas comuns do povo invadiram a Bastilha em 14 de julho de 1789 e retiraram os prisioneiros, criando o “14 de julho” como marco da identidade francesa.

No Brasil, a passagem dos séculos XIX para o século XX foi particularmente difícil no que tange à luta para nos desvencilhar das relações desiguais impostas por acordos comerciais bilaterais com a Europa, particularmente com o Inglaterra. O próprio José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), diplomata Barão do Rio Branco, fez seus esforços diplomático e político sobrenaturais para nos afastar da Europa e nos guiar no caminho das maiores nações emergentes pós-descolonização na América: Venezuela e Estados Unidos.

A escravidão africana substituiu a escravidão indígena. Mas depois de 1822, a manutenção dos laços coloniais com a Inglaterra e com todo o histórico do tráfico de escravos começou a pesar contra o Brasil. É importante dizer que, à época, esse tipo de mercado se tornou obsoleto para a Inglaterra, mas não para o Brasil. As sanções internacionais forçaram a criação de quatro leis nacionais abolicionistas devido a esses constrangimentos – Lei Eusébio de Queiróz (1850), Lei Áurea (1888), Lei do Ventre Livre (1888) e Lei dos Sexagenários (1885). O nosso país só se desvencilhou da escravidão apenas na Lei, na vida real ela prosseguiu.

Em princípios do século XX, no restrito universo acadêmico nacional, as Ciências Humanas e Sociais no Brasil devem-se, em grande medida, aos intercâmbios culturais e a cooperação intelectual com os países europeus, em particular com a França. Porém, àquela altura, a França ainda não questionava o seu passado imperialista e seu enriquecimento às custas do roubo de objetos culturais da África. Desse modo apenas aprendemos com os franceses sobre a importância da preservação do patrimônio histórico e artístico nacionais.

A reviravolta internacional começa em meados da década de 1950, quando os últimos países que eram colônia da Espanha, Inglaterra, França e Portugal, mesmo prejudicados, precisam lidar com os resultados do passado e seguir em direção a algum futuro. Consequentemente, em fins da década de 1980 teóricos como Raymond John Vincent percebem que a relação entre as diferentes culturas, relações internacionais e direitos humanos exerce um grande poder na política internacional e nos meios de comunicação.

E o que nos traz o século XXI? Agora vemos que a luta contra o passado colonial e o antirracismo andam juntos, bem como as reivindicações por parte de países que foram roubados em suas riquezas culturais pelas ex-metrópoles, em transações comerciais aparentemente legais e em meras interações diplomáticas prejudiciais às culturas nativas.

O atual movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam) iniciado nos Estados Unidos após a morte de várias pessoas negras pela polícia, inclusive culminando com o assassinato de George Floyd (1974-2020) em 25 de maio de 2020, causou grande comoção internacional, consequentemente provocou a derrubada da estátua do traficante de escravos britânico Edward Colston (1636-1721), em Bristol, na Inglaterra.

O movimento tem recebido importantes apoios internacionais de artistas, políticos, intelectuais e até de museus europeus. O atual diretor do Museu Britânico, Hartwig Fischer, publicou uma menção de apoio ao movimento Black Lives Matter, para se solidarizar com as comunidades negras britânicas, afro-americana e de todo o mundo, na qual sinaliza sobre a necessidade de reflexão acerca dos embates contenciosos históricos tão complexos da conexão humana.

Nós não temos como saber se as palavras de Hartwig Fischer são sinceras, mas que foram interpretadas como “hipocrisia” por pesquisadores britânicos e africanos. Outro discurso que desperta reações contraditórias é o da França. Desde a década de 1970 o país já pretendia rever a sua política de boa-convivência com as ex-colônias africanas. Todavia, mais recentemente, foram realizados relatórios periódicos pela historiadora Bénédicte Savoy e o economista Felwine-Sarr no sentido da devolução temporária ou permanente de bens culturais a países como o Benin.

A destruição do patrimônio cultural, seu roubo ou desaparecimento é mais comum do que a sua proteção deliberada na maioria dos países ocidentais. Neste cenário, a manutenção de museus com histórias nacionais oficiais serve principalmente à construção de um ideal nacionalista e ao turismo cultural, como fonte de recursos. Museus correm o risco de cristalizar versões sobre a história que muitas vezes resvala para o reforço do racismo.

Ora, se a Inglaterra e a França estão se movimentando no sentido de ir contra o seu passado imperialista, se nos Estados Unidos o combate se dá hoje nas ruas contra o racismo através do movimento Black Lives Matter, então por que nós aqui no Brasil também não aproveitamos o ensejo para derrubar as estátuas que nos incomodam devido à sua mensagem racista?

Talvez porque, no Brasil, o debate sobre nosso patrimônio cultural material e imaterial não tenha sequer chegado à população. E se chegou, talvez a interface patrimônio cultural-racismo ainda não tenha sido suficiente para nos ajudar a combater o racismo, no qual estamos profundamente enraizados. É irônico lembrar hoje o racismo é um discurso oficial – porque parte do governo brasileiro – representado pelo atual Presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo.

Gilmara Benevides é doutoranda em Direito, historiadora e antropóloga. Pesquisa sobre patrimônio cultural e relações culturais internacionais.

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