Por que que a extrema-direita cresce em todo o mundo III: o retorno do recalcado
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Por que que a extrema-direita cresce em todo o mundo III: o retorno do recalcado

3 de fevereiro de 2019
Por que que a extrema-direita cresce em todo o mundo III: o retorno do recalcado

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Em 26 de setembro de 1815, assina-se em Paris o tratado que põe fim a guerra em que o Czar Alexandre I derrota as tropas francesas sob o comando de Napoleão Bonaparte. Nesse mesmo ano as potências monárquicas da Europa: o Império Russo, o Império Austríaco e o Reino da Prússia, reunidas no Congresso de Viena, formam o que se denominou de Santa Aliança. Ela buscava reorganizar o mapa político da Europa, mas, acima de tudo, conter a difusão do ideário da Revolução Francesa, semeado por Bonaparte. A Santa Aliança foi, portanto, uma tentativa reacionária das monarquias europeias de fazer a história retornar ao período anterior ao grande acontecimento francês. Com a derrota de Napoleão, o que a Santa Aliança buscava era o retorno do Antigo Regime, com o banimento das ideias liberais e constitucionalistas, a retomada do domínio das aristocracias frente as burguesias, a recolonização dos países da América, tudo inspirado, segundo o czar russo, “nas elevadas verdades presentes nas palavras de Nosso Salvador”. No entanto, em pouco mais de trinta anos, os objetivos da Santa Aliança se viram frustrados e a tentativa de conter as mudanças, de se contrapor a história, de fazer o mundo retornar no tempo, soçobraram completamente.

O que estamos assistindo, nesses tempos de acensão da extrema-direita no mundo, é uma espécie de Santa Aliança, em que as forças reacionárias globais se descobriram, através dos meios de comunicação e das redes sociais, se identificaram na tentativa de conter uma série de mudanças nas ideias, nos valores, nos costumes, nas formas de vida, nas crenças, nas tradições, nas relações e hierarquias sociais. Assim como a Santa Aliança foi fruto e só existiu como um produto reacionário ao processo revolucionário burguês, o crescimento das posições de extrema-direita no mundo, hoje, é produto do processo de globalização a que se opõem. É graça ao espantoso processo de expansão das redes de comunicação globais, acelerado a partir dos anos oitenta do século passado, que esses grupos passam a militar e a se reconhecer como posições políticas cada vez mais presentes nas sociedades em todo planeta. Toda atividade reacionária é contraditória, não só porque ela é produto e está ligada àquilo mesmo a que reage, como essa reação é possibilitada pelas condições materiais, tecnológicas, econômicas, culturais a que buscam combater. A extrema-direita denuncia a globalização, se declara, pelo menos a maioria delas, nacionalistas, quando não regionalistas e separatistas, mas seu crescimento e atuação é inseparável dessa própria globalização, podendo arregimentar seguidores em toda parte do planeta. Ao mesmo tempo que defende o fechamento das fronteiras dos países à imigração, veiculando discursos xenófobos e racistas, retomando, inclusive, discursos suprematistas, defendendo a superioridade de raças e povos em relação a outros, a extrema-direita se globalizou graças à circulação ininterrupta de pessoas, de suas próprias lideranças, que atuam em nível global, não apenas através das redes sociais, mas presencialmente, estabelecendo organizações e organismos com vocação internacional (o instituto Milênium, com sede no Brasil, é um exemplo) e, por mais contraditório que possa parecer, arregimentando adeptos entre aqueles povos e entre as ditas raças consideradas inferiores (ainda outro dia, a TV europeia veiculava a imagem de um grupo neonazista peruano, composto, em sua maioria, evidentemente, por rapazes de descendência indígena). No Brasil, embora sejam vítimas de constante preconceito, há nordestinos de extrema-direita, com discurso racista e, inclusive, se proclamando neonazi.

Mas um dos elementos que está na base desse crescimento da extrema-direita no mundo é um dos aspectos ao qual a Santa Aliança também deu atenção: a mudança de ideias, valores e comportamentos. A extrema-direita se alimenta do mal estar e do ressentimento, quando não do ódio, provocados pela emergência de novos valores, de novas figuras e identidades sociais, de novas relações sociais, da mudança nos códigos de conduta e nos modelos de subjetividade. Ela quer fazer o mundo retornar, em muitos casos, aos valores da Idade Média, quando a religião e a religiosidade explicava e justificava todas as formas de viver e de ser sujeito. Em alguns casos, a extrema-direita contemporânea se conecta ao que tentou fazer a Santa Aliança, ou seja, retomar a prevalência da explicação religiosa e do fundamento teológico para as ações e julgamentos, recolocando a moral e o moralismo no centro das decisões políticas e jurídicas. É fazer a história recuar para antes do processo de laicização e dessacralização do mundo trazido pela acensão da burguesia e pelo desenvolvimento da vida moderna. Se pode avaliar o tamanho da jaboticaba à brasileira que Jair Bolsonaro significa, ao vermos a nossa liderança de extrema-direita querer conjugar o que historicamente sempre foi incompatível, as premissas liberais em economia e as premissas teológicas cristãs, radicalmente antiliberais, embora nas religiões mercadológicas e mercantis atuais isso já não pareça tão inconciliável assim, afinal se o mercado é o Deus ex machina do liberalismo, parece ser também de algumas igrejas seguidoras da teologia da prosperidade, como a dos grandes gurus bolsonaristas Silas Malafaia e Edir Macedo.

A extrema-direita cresce em todo mundo diante da angústia e do mal estar causados, por exemplo, pelas mudanças sociais trazidas pela lutas e conquistas das mulheres, ao longo do século XX. A extrema-direita costuma ser machista, antifeminista, misógina, já que expressa a inconformidade dos homens, e das mulheres que partilham do machismo, com as mudanças que se deram nas relações de gênero, ao longo do século XX. A luta contra a chamada “ideologia de gênero” encarna, na verdade, o ressentimento e até o ódio às mudanças que as mulheres e os homossexuais realizaram nas relações de gênero, nas relações sexuais, familiares, parentais, etc. A nova, como a antiga Santa Aliança, se coloca como defensora da família, como se existisse um único e monovalente modelo familiar. Se a antiga Santa Aliança denunciava o fim da família extensa, patriarcal e patrimonialista, baseada nos laços hereditários e nobiliárquicos, se contraponto a emergência da família nuclear burguesa, assentada no direito civil e não no direito hereditário ou pretensamente divino, no direito de propriedade, no ideário individualista romântico, a nova Santa Aliança das extremas-direitas tomam essa família nuclear burguesa como uma forma universal e eterna de família, como o modelo familiar, para se contrapor ao surgimento de novos arranjos familiares e a informalidade e fragilidade das relações familiares, notadamente do laço matrimonial, em nosso tempo. Eles pretendem refundar uma família assentada nos valores cristãos que nunca correspondeu a seu ideal de família e que sempre foi diversificada em termos de realização nos diversos grupos sociais e nas diversas culturas.

A extrema-direita significa o retorno do machão, que se sente pressionado e limitado pelas conquistas legais e pela mudança nos valores, no imaginário e nos conceitos conseguido pela luta das mulheres. São homens que se sentem emparedados, com seu poder ameaçado, se sentem preteridos e até criminalizados pela legislação de proteção aos direitos das mulheres. O eleitorado de Bolsonaro foi majoritariamente masculino, o mito encarnava, para muitos desses homens, o retorno do macho ao comando, de onde ele nunca deveria ter saído (notadamente depois que uma mulher chegou à presidência da República, um acinte comunista insuportável). As agressões reiteradas às mulheres, feita pelo parlamentar e candidato, como o episódio emblemático com a deputada Maria do Rosário, deixa claro que o homo rusticus, o homo boçalis bolsonariano, é fruto da revanche machista, diante do que seria as injustiças sofridas pelos homens, nas últimas décadas. Podemos ver no crescimento da extrema-direita uma reação desesperada e angustiada dos machos diante da presença crescente da mulher no espaço público, numa tentativa de convencer a todos a voltarmos a época em que menino vestia azul e a menina vestia rosa. O papel da ministra Damaris Alves, nessa pantomima reacionária, é estratégico, pois ela encarna a mulher que, mesmo sequelada, mesmo vítima do machismo e da violência masculina, se dispõe a repor a naturalização das hierarquias entre homens e mulheres e a apregoar um retorno a família dita cristã que era e continua sendo machista, patriarcal e misógina . Ela é a vítima que legitima o algoz, que presta loas ao seu carrasco, naturalizando e divinizando distinções e hierarquias de poder que são social e culturalmente construídas.

O mesmo se pode dizer em relação ao discurso homofóbico que irmana toda a extrema-direita no mundo. Os homossexuais são alvo de campanhas difamatórias, de assédio moral, de intimidação física e de violência sanguinária por parte de grupos e indivíduos de direita e de extrema-direita, em todo o mundo (o episódio do exílio do deputado Jean Wyllys dá a dimensão de a que ponto o ódio homofóbico chegou no Brasil, açulado e legitimado pela troica bolsonarista, que fizeram dele, por ser o mais visível e destemido opositor do destempero homofóbico de Bolsonaro, o bode expiatório a ser literalmente sacrificado nos altares do fascismo tupiniquim). A homossexualidade militante e questionadora, que conquistou direitos e visibilidade social, é intolerável para pessoas e grupos que se sentem angustiados pela aproximação de si de corpos que expressam desejos e pulsões que por se fazerem presentes neles mesmos devem ser rejeitados com a máxima veemência. A homofobia costuma partir daqueles corpos onde o desejo e a pulsão homossexual se encontra de forma muito presente, já que, como sabemos desde Freud, ela está em maior ou menor grau atuando, em todos nós. O discurso e o gesto homofóbico, desde o mais irrefletido até aquele militante e agressivo, nasce dessa tentativa de se ver livre de um desejo, de uma pulsão que atormenta o homofóbico. A fobia nasce do medo do contato e do contágio justamente porque o fóbico já está muito mais próximo daquilo que teme do que suspeita, ele morre de medo de não resistir e de se contaminar no contato, daí a repulsa neurótica. Os grupos neonazistas, os grupos masculinos de extrema-direita, como é o caso da entourage bolsonarista, formada, quase sempre, de jovenzinhos e de senhores que se proclamam machos, mal esconde a presença do desejo homossexual. O investimento libidinal e passional feito em torno do corpo do capitão e de sua misancene machista estereotípica, deixa claro que havia circulando nesses agrupamentos uma indisfarçável erótica homossexual e homoafetiva. A fixação anal, que parece também acometer o guru filosófico da trupe, o fato de não resistirem a colocar o ânus na boca, falando nele e dele insistentemente, as performances de culto ao falo, aos músculos, ao macho rude e acéfalo, mal esconde a presença do desejo homoerótico aí atuante. Todos sabemos que os corpos e fardas militares constituem um dos fetiches homoeróticos mais recorrentes, quase sempre, como parte de fetiches sadomasoquistas. A apologia da tortura ou a sua aceitação, não deixa de estar relacionada a desejos de caráter sádico e masoquista, embora esse tipo de prática costume, no mundo real, a ser presididas por elaborados códigos que limitam e regulam a prática, afastando-a do universo da tortura, não podendo ser a ela assimilado, nem do ponto de vista jurídico, nem do ponto de vista ético.

A acensão da extrema-direita é inseparável da presença crescente, entre os pobres, os trabalhadores, os marginalizados, da insegurança existencial, como já discuti em outro artigo dessa série. Mas essa insegurança também foi potencializada por essas mudança de valores. Se a insegurança do trabalhador cresceu com a precariedade das relações de trabalho, trazidas pela nova fase do capitalismo, pelas reformas neoliberais, pelo declínio da centralidade do trabalho produtivo na economia global, essa insegurança se intensifica quando as tradicionais hierarquias de gênero, nacionais e étnicas se veem ameaçadas. Se antes, o trabalhador, subordinado, subalterno, explorado em seu trabalho, muitas vezes humilhado, tinha a sua casa para reinar como um déspota, agora a legislação protege, cada vez mais, as mulheres e as crianças do poder discricionário do marido e do pai. Esses homens se tornam cada vez mais ressentidos, esperam com o voto e a militância na extrema-direita o retorno do mundo aos eixos, com o retorno do poder do macho. Se o imigrante, esse ser de outra cultura e de outra etnia ameaça seu trabalho, os casamentos internacionais, interculturais e interraciais aparecem como ameaças as famílias e as futuras gerações. Se antes, o trabalhador tinha seu corpo usado, desgastado, alquebrado no trabalho, ele podia, em casa, fazer o uso discricionário que quisesse dos corpos de suas mulheres e filhos, pelo menos, era assim que se pensava. O ódio ao feminismo, aos direitos humanos, ao estatuto da infância e da adolescência, que irmana a toda a extrema-direita, no Brasil, e no mundo, nasce do fato de que eles vieram limitar e regular o poder masculino e vieram punir as violências e desmandos cometidos pelos homens.

É nesse mesmo sentido que devemos entender o ódio, a raiva e o ressentimento que emergiu na sociedade brasileira com a emergência das políticas de afirmação da população afrodescendente, com a política de cotas, com a legislação de regulamentação do trabalho doméstico. Essas conquistas feitas pelos movimentos de afirmação da população negra e indígena, pelos movimentos sociais, vieram mexer em seculares hierarquias presentes em nossa sociedade. A presença crescente dos negros e indígenas nos espaços e instituições vistas como sendo para brancos, causou uma enorme angustia e apreensão entre os considerados brancos, notadamente das classes médias, em processo de declínio social, como a classe médica, assustada com a presença negra e cubana em suas, até então, exclusivas atividades. Essa angústia e apreensão se traduziu em agressividade e ressentimento dirigidos contra o petismo, acusado de comunista, justamente, por promover, através das políticas afirmativas, mudanças nas hierarquias sociais. O discurso anticomunista, que parece caricato e fora de época e lugar, ganha sentido quando entendemos que o significado de comunismo no imaginário das elites e das classes medias brasileiras, desinformadas e ignorantes em grande escala, é justamente toda e qualquer medida, ideia ou reivindicação que vá na direção da redução das desigualdades sociais, da mudanças nas relações e hierarquias sociais, nos valores e costumes que reafirmam e legitimam a desigualdade estrutural entre classes e grupos sociais, no país. A defesa da meritocracia, mal esconde a defesa da manutenção do status quo, a manutenção dos privilégios daqueles que são considerados e se consideram mais merecedores, não necessariamente por terem maiores méritos, mas por serem quem são, por terem a origem social que tem, porque são da raça que é. Meritocracia em nosso país ainda repercute a ideia colonial do homem bom, existem os bons, os melhores, que são as elites sociais, mesmo que ignorantes e despreparadas, como muito se mostram, basta ver o idiocracia instalada em Brasília. As políticas afirmativas, a educação e a universidade para todos, que o ministro da educação diz não ser possível, ser demagogia, ameaçaram modificar as relações e hierarquias raciais, no país, o que foi, para muito ditos brancos, insuportável. Ver o filho da empregada doméstica na universidade, ao lado de seu filho, era assustador para o patrão e a patroa, não apenas pelo que simbolizava, o princípio “comunista!” da igualdade de direitos e oportunidades levado à prática, como por representar uma dupla ameaça para o futuro de seus descendentes e de seus privilégios: ter que vir a concorrer no mercado de trabalho com esse negro, que passa a ter possibilidades de acensão social, com a formação conquistada, bem como vir a ficar sem a possibilidade de ter um serviçal, um trabalhador para lhe servir. O bolsonarismo e a extrema-direita é profundamente racista, como racista é estruturalmente a sociedade brasileira. Qualquer política pública que ameace mexer no racismo estrutural de nossa sociedade vai gerar reações extremadas, como o assassinato de Moa do Katendê, durante a campanha política, ou o assassinato de Marielle Franco, triplamente significativo, já que ela era uma mulher negra e homossexual. A legislação que regulamentou o trabalho doméstico, e toda e qualquer legislação que regulamente o trabalho, que Bolsonaro promete levar quase à informalidade, atinge uma relação que, na história do país, foi, por quatrocentos anos, uma relação quase completamente desregulamentada: a relação escravista de trabalho. Se a luta dos escravos foi impondo limites ao poder senhorial, este era visto como quase absoluto, sem peias e sem travas. Nossas elites ainda guardam esse desejo de ter o corpo do trabalhador para ser usado sem qualquer limites. É fato, de que a exploração do trabalho é um tônica do capitalismo em todo e qualquer espaço, mas no Brasil, ele se reveste desse imaginário vindo da escravidão e é inseparável do racismo e das hierarquias e valores que ele estabelece. A cor da pele continua sendo uma marca desqualificadora no país.

A reação a possibilidade de vir a ficar sem serviçais, sem ninguém para servir, lógica que também preside as relações entre homens e mulheres, adultos e crianças no Brasil, o medo de não poder desfilar com sua empregada doméstica de estimação, como se desfila com seu pet, com seu dog, fez muitas madames odiar o petismo, odiar de coração sua semelhante Dilma Rousseff, e ter ataques diante da vigência do “socialismo” no país. Ter serviçais sempre conferiu status na sociedade brasileira, portanto esses não podem ser pensados como sujeitos de direitos, mas como sujeitos de uso doméstico e privado, onde as relações devem estar imunes a intervenção do Estado (toda e qualquer controle coletivo dessas relações é visto como comunismo, daí a proposta de nos levar de volta ao século XIX instituindo a educação domestica, talvez reintroduzindo a palmatória e a chibata, já que a intervenção do Estado em defesa de interesses coletivos e nacionais e não interesses privados e corporativos é lida como socialismo, coisa de esquerdista) devem ser decididas pela negociação pessoal, atravessada pelo afeto, pela pessoalidade e, claro, pelas abissais diferenças de capacidade de barganha.

Nossos patrões sonham com a generalização das condições de como era antes exercido o trabalho doméstico: aquele que só por ser exercido já institui a inferioridade e menoridade social e de direitos daquele que o exerce, atravessado por uma linha racial e de gênero muito claras - a maioria era mulheres negras e mestiças -, os contratos precários e privados, dependendo, muito, da bondade e boa vontade dos patrões, que devem ser reconhecidas e retribuídas com mais dedicação e trabalho pelo empregado, sem jornada de trabalho e tarefas definidas, etc. A extinção da Secretaria da Igualdade Racial mostra que a vitória da extrema-direita, no Brasil, foi a vitória do racismo e dos racistas, como foi a vitória dos machistas, misóginos, sexistas, homofóbicos, etc, sentimentos e afetos, ideias e desejos recalcados e que agora retornam por encontrarem uma conjuntura favorável trazida pela crise global do capitalismo e das instituições modernas: política parlamentar, escola, prisão, manicômio, hospital, etc.

Mas assim como a Santa Aliança, as extremas-direitas querem, hoje, um retorno no tempo que é impossível. Aliás, a vaga dominante da extrema-direita mostra muito mais desespero, do que força e vigor. É a vitória do que o filósofo Espinosa chamava de paixões tristes, de paixões passivas, aquelas que nada criam, que buscam apenas destruir, evitar, barrar, fazer a roda da história girar para trás. O ódio, o ressentimento, a raiva, a inveja, o medo, a angústia, são paixões tristes, elas são excelentes para destruir laços, relações e instituições, mas péssimas para construir alguma coisa. Anos de destruição estão reservados para o Brasil e para o mundo, mas toda reação é, ao mesmo tempo, a afirmação daquilo a que se reage. Não há volta atrás possível: as mulheres, os homossexuais, os negros, os indígenas não abrirão mão de suas conquistas, por elas lutarão, reafirmarão suas vontades, desde que se entreguem a paixões ativas, desde que se entreguem aos desejos construtivos, não se deixem capturar pela irracionalidade reativa dos inimigos. Eles passarão, e a gente passarinho, desde que mantenhamos nossa disposição para o canto e para o voo, e não nos deixemos abater pelas armas assassinas que quererão nos fazer temer e tremer, pois o medo é paralisante e definhador.

A Santa Aliança ruiu, apesar de toda a sua “santidade”. Os santarrões hipócritas de hoje, os cemitérios caiados também ainda cairão do galho da goiabeira, e nossos valores civilizacionais prevalecerão sobre essa noite de obscurantismo, grosseria, boçalidade e ignorância que nos ameaça tragar a todos como a lama fétida, criminosa e gananciosa de Brumadinho tragou a centenas de vidas. Minha homenagem indignada e emocionada a esses brasileiros vítimas de um capitalismo selvagem sustentado pela ambição desmedida, a incúria e a irresponsabilidade política e a absoluta falta de ética e de valores humanistas. Aqueles que privatizaram a Vale, aqueles que a compraram e aqueles que a deviam fiscalizar e não o fizeram têm nas mãos e na consciência a nódoa inapagável do sangue de centenas de brasileiros.

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