Por Pedro Paulo Chaves Mattos
Se nos ativermos ao que foi dito durante os últimos anos pelo presidente Jair Bolsonaro, ignorando sem precisar de muito esforço as suas “idas e vindas” em seus pronunciamentos, o decreto que prevê a facilitação para a aquisição de armas de fogo não oferta o que prometeu por diversas vezes aos seus eleitores, mas - e apesar de ser um embuste - terá efeitos, seja no “fruto maldito [1]”, como no “cidadão comum como esses que se vê na rua, falava de negócios, ria, via show de mulher nua [2]”.
Ainda não teremos regulamentado, amparado expressamente pelo Estado, uma sociedade de filmes de faroeste, em que as pessoas andem ostensiva e profusamente armadas, realizando duelos em cruzamentos, filas de estabelecimentos. E embora esses episódios até tendam a se multiplicar, serão vistos como crimes, culpa do mordomo: do sujeito que não se contentou em ter uma arma em casa, como o Estado está eximido, até porque vai se dizer que governo nenhum puxa gatilho.
Há uma perspectiva de bom-senso (não se assuste leitor, apesar de tudo, há) que faça com que o Governo Federal seja tímido quanto a mudanças relacionadas ao porte de arma de fogo (poder se deslocar armado, comumente), pois uma abertura franqueada desta medida teria potencial para desmistificar a “culpa do mordomo”, e se já tivermos em consideração que a ânsia liberal já foi em parte saciada - a partir do sentimento de que “temos liberdade de ter amas”- é razoável que não teremos golpes agressivos nesse quesito, em especial.
Mas voltemos ao decreto. Das alterações que traz, a que mais atrai a atenção é a mudança de perspectiva quanto ao exame “da necessidade” para se ter uma arma. Antes, o interessado teria que passar por um crivo de viés subjetivo para comprová-la, ou seja, teria que fazer a autoridade outorgante reconhecer em sua íntima convicção através de uma exposição de motivos; hoje não, basta ao cidadão preencher certos requisitos para superar esta etapa, que sempre foi a mais difícil. Dessa forma, se você morar numa cidade que tenha índices de homicídios acima de 10/100.000 habitantes[3], morar em zona rural, possuir estabelecimento comercia ou industrial, ou estiver inserido em algumas outras categorias, você muito provavelmente não terá dificuldades para ser o proprietário de uma “bela” arma de fogo.
Alguns dirão que não está escrachado, que ainda há questões como a capacidade psíquica e de antecedentes que servem como real filtro. É de se comemorar que haja ainda algum mecanismo de controle para algo que envolve um elemento tão caro, como a vida? 71% dos homicídios tem como meio o uso de arma de fogo [4], isso nos diz claramente que a questão do armamento civil, seja na sua forma regulamentada ou criminosa, fala “de muito perto” sobre a violência no Brasil, muito mais do que num incremento da segurança pessoal, até porque como a chance de um policial ser assassinado no Brasil é 3x maior do que de uma “pessoa comum” [5], a arma – como se vê – é um péssimo instrumento de defesa.
Essa liberalidade assusta. Os reflexos no ambiente urbano, embora presumíveis, não devem alcançar a repercussão que teremos no campo. Há nos conflitos agrários todo um histórico de extrema violência contra os movimentos sociais, e grupos étnicos, com milhares de ativistas mortos, dezenas de chacinas. Muitos preferem ignorar, mas a excluir circunstâncias de guerra, não são necessárias ações deliberadas do Estado para uma promoção da escalada de violência dentro de uma sociedade, mas sim atos simbólicos, permissivos, instrumentais. A vitória de um discurso conservador já está demonstrando isso, agora teremos que conviver com os efeitos que seus atos poderão fazer.
[1] Música do Artista Mister Zoy.
[2] Trecho da música: Pequeno perfil de um cidadão comum, Artista Belchior.
[3] De acordo com estudos da Organização das Nações Unidas, essa será a taxa limite de tolerância para assassinatos dentro de uma sociedade.
[4] http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2018-06/armas-de-fogo-sao-causa-da-morte-de-71-dos-homicidios-no-brasil
[5] MANSO, Bruno Paes. Dos esquadrões ao PCC, 52 anos de violência mataram 130 mil pessoas. Jornal Estadão.