Proposta da prefeitura para Plano Diretor de Natal coloca em risco populações mais vulneráveis, avalia arquiteto
Natal, RN 28 de mar 2024

Proposta da prefeitura para Plano Diretor de Natal coloca em risco populações mais vulneráveis, avalia arquiteto

7 de maio de 2021
Proposta da prefeitura para Plano Diretor de Natal coloca em risco populações mais vulneráveis, avalia arquiteto

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A atual proposta de minuta do plano diretor é um contrassenso em relação a tudo que se vinha construindo na pauta ambiental na cidade”. A afirmativa é do arquiteto e urbanista, Saulo Cavalcante. Membro do Fórum Direito à Cidade, ele participou das oficinas e grupos de trabalho na etapa anterior à Conferência final do processo de revisão do Plano Diretor de Natal (PDN), que teve início na última quarta-feira, 5, com a aprovação do regimento interno e o calendário de atividades.

A atual etapa da revisão evidencia as divergências nas posições dos segmentos sociais envolvidos na construção da cidade, com o debate do texto apresentado pelo Conselho da Cidade (Concidade). Os 119 delegados à Conferência vão deliberar a versão final do Projeto de Lei de Revisão do Plano Diretor de Natal a ser enviada à Câmara Municipal. Nesta quinta-feira, 6, foi a vez das entidades profissionais, acadêmicas, de pesquisa, conselhos profissionais e movimentos populares se reunirem para discutir a minuta de lei. Hoje, os trabalhadores, através de suas entidades representativas, realizam suas plenárias.

A Agência Saiba Mais conversou com Saulo Cavalcante sobre o atual processo de revisão do Plano na cidade, marcada por críticas de diversos setores da sociedade ao formato virtual e à falta de transparência no processo por parte da prefeitura, que não ofereciam condições plenas para o exercício da participação popular. A realização da pré-conferência chegou a ser suspensa a pedido do Ministério Público Estadual, mas a prefeitura reverteu a decisão liminar e o processo foi retomado.

Agência Saiba Mais: A minuta da revisão do Plano Diretor de Natal traz muitas modificações em relação ao plano atual, que é de 2007. Como você avalia o texto proposto e a própria dinâmica do processo de discussão da revisão?

A atual proposta de minuta da revisão do Plano Diretor que está sendo apreciada durante a conferência final é produto de uma trajetória que vem acontecendo desde 2019. E como você coloca, ela propõe muitas alterações em relação ao texto original que é o Plano Diretor de 2007. E, a despeito do que a gente imaginava, de que essa revisão poderia sanar muitas lacunas que o plano traz, sobretudo com relação aos instrumentos urbanísticos e à gestão, que são pontos que o plano de 2007 abordou e nunca foram cumpridos pelas gestões que o seguiram, o plano ataca outra direção. Então, muitos dos problemas que o plano 2007 tinham, seguem. Muitas das coisas que o plano previa que eles fossem discutidos e trabalhados, não foram trabalhadas ao longo desses anos e o foco da revisão está sendo sobre áreas, sobre trechos do plano que considerávamos que já estavam adequadas. Sobretudo a minuta que está sendo discutida agora é uma minuta muito ruim para o processo do planejamento urbano em Natal, porque ela não responde às expectativas que a sociedade tinha. Pelo contrário, ela fragiliza pontos muito delicados da cidade como permitir uma verticalização de até 140 metros em toda a cidade, aumentar o potencial construtivo da cidade, de forma que você possibilita construções muito densas em áreas onde não há suporte de infraestrutura física para isso. Também há uma ameaça à integridade das zonas de proteção ambiental que estão sob risco de serem reduzidas e algumas extintas. Então, na minha avaliação, a atual proposta de minuta do plano diretor é um contrassenso em relação a tudo que se vinha construindo na pauta ambiental na cidade.

A orla é um dos pontos mais conflitantes entre os diferentes segmentos envolvidos. Você pode explicar por que e como a proposta faz a organização dessa área? 

A orla de Natal sempre foi um objeto de desejo dos segmentos de construtoras, dos segmentos especulativos imobiliários e sempre foi também um espaço aqui em Natal de abrigo, de moradia de comunidades tradicionais e de áreas especiais de interesse social. Então, sempre houve esse conflito, porque ao mesmo tempo que existem comunidades inteiras vivendo ali, há um esforço dos setores especulativos imobiliários em transformar essas áreas em espaços de lucro e expulsar pessoas de seus territórios. Ao longo da discussão da minuta, houve muito vai e vem de propostas. A prefeitura chegou a defender a verticalização da orla de Natal abertamente. O prefeito, inclusive, foi convidado para um seminário em que, num emblemático vídeo, disse que a orla de natal era muito feia e que Natal deveria seguir o exemplo das capitais de João Pessoa e de Recife de verticalizar a orla. Entretanto, entre esses vai e vem, algumas dessas propostas originais se perderam. Hoje se recuou na proposta de verticalização da orla, muito em função da impopularidade da proposta. Muitos setores foram contrários a essa proposta. Mas, de uma forma ou de outra, ainda segue a semente, sobretudo no que diz respeito à área não edificante de Ponta Negra, que são aquelas 9 quadras que ficam entre a avenida Engenheiro Roberto Freire e a praia de Ponta Negra, que são protegidas desde de 1979 por uma lei que impede construções nessas quadras sobre o risco de se perder o potencial cênico paisagístico que se tem do Morro do Careca. A atual minuta extingue essa proteção da área não edificante e estabelece um regramento muito duvidoso, que ameaça a integridade dessa paisagem, ao permitir que construções aconteçam nessa área, ainda que de uma forma limitada, ainda que de uma forma com controle de altura, a permissão da edificação nessa área põe em risco esse potencial cênico e, claro, com esse processo de ocupação da orla, cresce a pressão para que no futuro essa flexibilização acabe ensejando o fim definitivo da proteção de altura e essa paisagem se perca.

"Há uma ameaça à integridade das zonas de proteção ambiental que estão sob risco de serem reduzidas e algumas extintas"

E que outros pontos polêmicos apresenta a proposta? 

Hoje as maiores ameaças que a minuta traz são duas: a primeira delas é a integridade das Zonas de Proteção Ambiental. A atual proposta tem uma previsão de transformar as Zonas de Proteção Ambiental, que são áreas militares, ou seja a 6 e a 7, que são Morro do Careca e a ponta do Forte dos Reis Magos, em zonas especiais militares, permitindo que os militares façam o uso que quiserem desses territórios. Isso é uma ameaça porque o território dessas ZPAs hoje pertencem às forças armadas, mas isso não é uma constante. Inclusive na ZPA 7, as Forças Armadas fizeram permutas dentro desse território, ou seja, trocaram os territórios, venderam suas terras para construtoras e imobiliárias. Na prática isso significaria não estabelecer prescrições urbanísticas, o que daria um cheque em branco para que as Forças Armadas pudessem fazer transações imobiliárias com o território que é de vulnerabilidade e fragilidade ambiental e desempenham funções ambientais. Assim como está sendo ameaçada a Zona de Proteção Ambiental 8, que fica no Mangue, que fica nas margens direita e esquerda do Rio Potengi, que a proposta atual diminui essa faixa de proteção, fragilizando o ecossistema de manguezal que é um ecossistema muito frágil.

"A atual minuta extingue essa proteção da área não edificante e estabelece um regramento muito duvidoso, que ameaça a integridade dessa paisagem, ao permitir que construções aconteçam nessa área, ainda que de uma forma limitada, ainda que de uma forma com controle de altura"."

O segundo ponto é com relação aos potenciais construtivos nas coeficientes de aproveitamento que estão sendo propostas que são exorbitantes para a cidade. Para se ter uma noção, o atual coeficiente básico é de 1.2 e existem bairros que, segundo essa proposta, podem chegar até o limite de 5.0. Isso significa aumentar em muito o adensamento construtivo, aumentar muito a necessidade dos sistemas de esgoto, de transporte, de abastecimento de água. Bairros como Lagoa Azul, que hoje tem um coeficiente de aproveitamento de 1.2, passariam para 5.0. isso significaria demandar da infraestrutura da região norte uma aporte gigantesco, densidades altíssimas, e isso dentro de uma realidade em que a região norte já sofre com racionamento de água e a atual rede de esgotamento sanitário Natal já está em colapso, com a estação do Baldo sendo a única em operação. Argumenta-se que esse aumento seria possível com as obras de Natal 100% saneadas, que estavam previstas de serem concluídas em 2017, mas até hoje não foram concluídas. Então são especulações que não trazem embasamento nem segurança técnica que justifique esse aumento de potencial construtivo.

As entidades de defesa do patrimônio, da paisagem natural, vêm afirmando que a prefeitura não apresentou um projeto de revisão do plano diretor, eles estão propondo um novo plano. A prefeitura pode fazer isso? 

Muito dessa opinião que não estaria sendo feita uma revisão mas elaborando um plano novo se baseia no fato de que a prefeitura tem feito alterações significativas, não apenas em elementos pontuais, mas em trechos do texto que embasam seus conceitos, diretrizes e objetivos. Assim como ela nunca chegou a apresentar de fato uma avaliação de quais seriam os artigos que foram implementados ou não, quais que prescindiam, qual a necessidade de serem revistos ou qualquer tipo de explicação de por que fazer essa revisão tão extensa e abarcando todo o conteúdo do texto.A prefeitura nunca apresentou essa análise. Então por isso que se tem essa opinião e também por isso que afirmamos que esse processo tem sido conduzido muito em alinhamento com setores especulativos imobiliários, de forma que a gente tem visto a prefeitura alinhar-se e assimilar as propostas somente desse setor em detrimento dos diversos outros setores da sociedade civil organizada que participaram dos espaços.

Quais os percalços enfrentados ao longo de 2019 e 2020 na discussão? Quantas contribuições à revisão foram feitas pelo conjunto da sociedade? E elas foram realmente acolhidas nesta proposta colocada para discussão até o dia 16 de junho para que não tenhamos um aprofundamento das desigualdades na capital potiguar?

Ao longo de 2019 nós fizemos a segunda etapa do processo, que é uma etapa de escuta da sociedade, em que a sociedade em tese deveria participar através das oficinas e audiências públicas para contribuir com o texto da minuta. Entretanto, o que se viu nesse momento foi uma participação teatral. A prefeitura fingiu fazer um processo participativo, de forma que apesar de ter feito oficinas e audiências públicas, orientou-se e escolheu de forma monocrática quais contribuições ao texto deveriam ser incorporados ou não à minuta. Ainda que tenham surgido centenas de propostas, considerando as propostas que se repetiram, e centenas de pessoas tenham participado das atividades, o resultado final não traduz o volume de contribuições que a sociedade civil organizada fez, pelo contrário, ela traduz apenas as construções feitas pelos setores especulativos imobiliários. De forma que ela não traz pluralidade de propostas para os artigos, ela só traz uma visão que foi a visão que a prefeitura escolheu, e de forma monocrática.

Em 2007, Natal foi palco de uma das maiores operações contra a corrupção do Estado, conhecida como Operação Impacto. A partir de interceptações telefônicas, vereadores e assessores e empresários foram flagrados combinando (vendendo) voto na revisão do plano diretor. Ao todo, 13 pessoas foram condenadas, entre vereadores e empresários. Qual o legado dessa operação? Ficou alguma lição?

A Operação Impacto, que apurou as irregularidades durante as alterações do plano em 2007 pelos vereadores, quando chegou na etapa da Câmara, com certeza impactaram os caminhos dessa revisão agora. Mas de uma forma muito ruim. O que  eu posso afirmar é que, não somente a operação Impacto, mas o contexto político em que a atual a revisão está se dando. Em 2007, ainda que não tivéssemos um governo 100% progressista, um governo municipal progressista, a revisão foi conduzida de forma a qualificar a participação social, de modo que os empresários do setor construtivo e imobiliário estiveram presentes na revisão mas foram"derrotados” durante a discussão com a sociedade civil organizada. Eles não tiveram forças para expressar as suas vontades,  esperaram que o processo chegasse na Câmara para em comprar os vereadores e encartar as propostas que eles haviam feito e que não haviam passado. A atual revisão conta com um outro cenário. O atual governo municipal, a gestão de Álvaro Dias, é completamente alinhada com setores especulativos imobiliários e descompromissada com os processos participativos. Ainda que se tenha, pela exigência do ofício, as audiências públicas e as oficinas, as contribuições da sociedade civil não são de fato acatadas e não são consideradas pela gestão na hora de elaborar a minuta. O que o setor imobiliário fez foi apropriar-se desse processo de formação da minuta de modo a estabelecer suas relações, não apenas na fase dos vereadores, mas na fase de elaboração da minuta, ainda quando ela está sobre o poder executivo. Se existem relações escusas, sombrias nesse processo, não posso afirmar. O que nós podemos afirmar é que o alinhamento entre a gestão e esses setores de fato tem feito com que esse ambiente seja propício para que os absurdos que não foram implantados em 2007 voltem agora com força e com aceitação da prefeitura. O atual cenário é de que os empresários “não precisam” recorrer a compra dos vereadores, porque as relações deles com a gestão já está traçada e eles estão jogando no jogo dado. Além do fato de que o prefeito tem uma maioria absoluta na Câmara, dos 29 vereadores cerca de 20 ou mais se declaram de situação, e ele tem uma maioria absurda, então consegue articular de forma a implantar os seus processos como queira.

"A prefeitura fingiu fazer um processo participativo, de forma que apesar de ter feito oficinas e audiências públicas, orientou-se e escolheu de forma monocrática quais contribuições ao texto deveriam ser incorporados ou não à minuta".

Se a minuta for aprovada, o que muda na vida do natalense? E para os mais pobres, que efeitos terá esse plano ?

A atual minuta, se ela for aprovada conforme está posta, com certeza será muito ruim para os natalenses mais pobres. E eu digo isso porque o projeto que ela propõe para Natal é um projeto voltado para a valorização especulativa na terra. Isto é, transformar territórios que hoje são protegidos por instrumentos de zoneamento como ZPAs e as áreas especiais de interesse social em território livre para o mercado especulativo e o mercado imobiliário atuarem. E apesar disso parecer muito distante das pessoas, isso significa concretamente impactar no preço da terra, no IPTU, no custo de vida, nos padrões sociais de ocupação naquele espaço, e expulsarão, muito provavelmente, as populações mais pobres ou das áreas centrais ou mesmo da cidade, como já acontece em alguns trechos do território. Se atual minuta se mantiver como está desenhada, nós veremos o município perdendo população, veremos o município com um aumento de sua verticalização, veremos um prejuízo à paisagem da cidade e, se um elemento especial, que é a redução das Zonas de Proteção Ambiental, acontecer de fato, se concretizar, nós também poderemos ver um prejuízo ecológico à nossa cidade. Isto é, nós podemos ver o nosso mangue cada vez mais degradado, cada vez mais reduzido, assim como também está em risco as dunas do Morro do Careca, que está previsto para deixar a rescisão de Proteção Ambiental. Também a ZPA 8, que margeia a Avenida João Medeiros Filho, que passaria a ser densamente ocupada, afetando a vida e todo ecossistema de manguezal que ali se instala. Então a nossa avaliação é de que é necessário que sejam feitas modificações nessa minuta, se não nessa etapa da Conferência, na etapa da Câmara dos Vereadores. Porque nós não podemos aceitar colocar em risco o nosso patrimônio e não podemos aceitar colocar a integridade das nossas populações mais vulneráveis em risco.

"O atual cenário é de que os empresários “não precisam” recorrer a compra dos vereadores, porque as relações deles com a gestão já está traçada e eles estão jogando no jogo dado".

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