Quem crê no Diabo já lhe pertence
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Quem crê no Diabo já lhe pertence

19 de janeiro de 2021
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Olhando as gravuras que o pintor francês Eugène Delacroix fez para ilustrar a peça “Fausto”, de Goethe, eu penso comigo mesmo: “Bem que o povo brasileiro podia prestar mais atenção na literatura”.

Na verdade, o Fausto, de Goethe, é baseado em um personagem real que virou lenda e alimentou a literatura popular de fins do renascimento. O mundo do doutor Georg Johannes Faust, nascido por volta de 1480 no distrito de Knittlingen, no estado de Baden-Wutenberg, era uma zona de fronteira entre o mundo das antigas artes esotéricas medievais e o universo da ciência moderna. Nas universidades, se estudava lado a lado, em um contínuo desconcertante para as sensibilidades contemporâneas, astronomia e astrologia, química e alquimia, biologia e magia natural.

Talvez por isso, naquela época, pairava sobre os médicos e os sábios uma estranha áurea sobrenatural. O fato é que depois da morte do Fausto histórico, toda uma mitologia sobre sua figura caiu no gosto popular e serviu para fomentar diversas croniquetas fabulosas sobre um suposto pacto que o dito médico teria feito com o diabo.

Durante todo o século XVI e XVII correram lendas sobre Fausto. Dizia o povo que ele teria virado teólogo na universidade de Heidelberg, que teria abusado de crianças em uma cidade chamada Kreuznach, que teria sido banido de Ingolstadt como charlatão após ter lido o horóscopo para um Bispo.

Mil e uma histórias que misturam “faustos” reais e mitológicos em uma grande salada de prosa germânica e que acabaram por influenciar um livreiro de Frankfurt, chamado Johann Spiess, que compôs em 1587 a primeira obra literária de uma série de autores que inclui nomes como Christofer Marlowe (1563 – 1593), um jovem escritor inglês que, segundo Harold Bloom, teria sido tão bom quanto Shakespeare, se não tivesse morrido com trinta anos, assassinado em meio a uma briga de bar.

Desses, Lessing e Goethe, são os escritores mais famosos a tratar do pacto do Doutor Fausto com Mefistófeles, um diabo curiosíssimo, bem diferente do Satã heroico composto pelo poeta inglês John Milton no seu “O Paraíso Perdido”. O esperto Mefistófeles oferece ao seu contratante mais vida, mais poder e rejuvenescimento; em troca da sua alma.

Em 1947, seguindo a tradição dos faustos alemães, Thomas Mann publica Doutor Fausto, uma novela de 709 páginas (na edição brasileira) que eu li no tempo do meu doutorado em Letras na UFRN, lá pelo final da primeira década desse século.

O texto de Mann me pareceu, à época, definitivo no campo da tradição faustica alemã, isso porque, Mann, que é filho de uma brasileira, conta a história de Adrian Leverkühn, um músico talentoso, da mesma geração de Adolf Hitler, Heidegger e Wittgenstein, que após um diálogo com o diabo em um sonho, troca sua alma pelo poder de realizar uma grande obra artística.

Na verdade essa parece ser uma imagem literária para o grande pacto que a Alemanha fez com Hitler e que a levou, fausticamente, à grande devastação da segunda guerra e a quase total destruição da alma e da cultura de seu povo.

Quer seja o poder, a juventude devolvida, o prazer ou o orgulho de produzir uma obra artística definitiva a figura do diabo, com sua mitologia ligada de modo intenso ao inconsciente coletivo da humanidade, sempre aparece propondo um pacto, um acordo, uma composição, um contrato, que parece ser vantajoso em um primeiro momento, mas que sempre tem, no seu contraponto, a dureza excessiva no preço a ser pago em contrapartida pela prestação do serviço.

Simbolicamente, Mefistófeles pode ser identificado (como faz Marshall Berman no ensaio clássico: Tudo que é sólido desmancha no ar) com a força descomunal do capital que arrasa a terra e trucida o mundo natural para oferecer poder ao homem.

Apesar disso, Mefistófeles pode aparecer como um conteúdo psíquico de qualquer um (inclusive daqueles que, por falta de estimulo, tempo, interesse ou capacidade nunca leram um livro) travestido com os signos de um propositor de pactos sedutores de poder.

Ultimamente não tenho encontrado outra explicação para o momento que vivemos no Brasil, em meio a uma pandemia monstruosa que já ceifou, no momento em que escrevo esse texto, mais de 200 mil vidas, que não as que a literatura me emprestou nesses meus 46 anos de vida nesse país.

Entender como é possível que uma parcela ainda substancial de meus compatriotas ainda dê sustentação e apoio a figura de Jair Bolsonaro, que cultiva tão diligentemente as duas piores características coletivas do brasileiro (a ignorância e a falta de respeito pelo outro), só parece fazer sentido para mim quando vejo esse embaraçoso fenômeno a luz do pacto faustico descrito por Goethe, Marlowe, Mann e Lessing.

Ainda mais quando as narrativas usadas pelo grupo que o apoia mudam toda a semana, transformando a arte da mentira, na qual o diabo é mestre absoluto, em uma política oficial de governo.

Esse cenário fica ainda mais inquietante quando a gente vê a quantidade de pessoas que se dizem cristãs e seguem fanaticamente esse falso messias, que atua dia e noite para ampliar o alcance de destruição desse vírus desgraçado que sufoca e mata as pessoas que amamos.

No fim das contas, é bem provável que Harold Bloom esteja mesmo certo em apontar que há uma paixão recalcada no cristianismo evangélico norte americano (muito influente no Brasil de Bolsonaro) pela figura de Satanás. Basta ver o modo como o próprio John Milton, que era um puritano calvinista, no seu poema O Paraíso Perdido, tornou Lúcifer um personagem muito mais sedutor, em sua desobediência ontológica contra Deus, do que o próprio Cristo.

Vendo hoje tanta gente no Brasil que ainda acredita nas declarações de Bolsonaro e dos seus capangas; e que ainda encontra justificativa para a sua ação genocida no governo do país, só posso pensar como o personagem de Thomas Mann no Doktor Faustos e dizer nessas melancólicas linhas que encerram esse texto: “quem crê no diabo, já lhe pertence”.

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