Quem foi Leilane Assunção, a primeira professora universitária trans do Brasil
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Quem foi Leilane Assunção, a primeira professora universitária trans do Brasil

14 de novembro de 2018
Quem foi Leilane Assunção, a primeira professora universitária trans do Brasil

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Leilane Assunção amava os gatos e as plantas. Feminista, redescobriu-se e se reconheceu transexual ainda aos 24 anos, na universidade. Leilane viveu até os 37, quando a média de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos de sobrevida.

Leilane era inquieta, obstinada, intensa, espontânea e, sobretudo, consciente do papel que exercia como intelectual na academia ou como ativista dos Direitos Humanos, seja em defesa da pauta LGBT, da causa dos animais e ambiental ou da luta anti-proibicionista pela legalização e descriminalização das drogas.

A morte da historiadora, ativista e primeira professora universitária transexual do Brasil na terça-feira (12), vítima de uma pneumonia que evoluiu para uma infecção provocada por um fungo após 30 dias internada no hospital Giselda Trigueiro, não apaga o legado de luta pela sobrevivência cultivado por ela até os últimos dias.

Pelo contrário, ilumina uma trajetória de incansável resistência pela vida.

Leilane ultrapassou a fronteira imposta pela sociedade à comunidade trans ao entrar na universidade e chegar até o topo da titulação com a conclusão do doutorado. Estima-se que hajam apenas 10 doutores transexuais no Brasil e Leilane Assunção era uma delas.

Ao conquistar o acesso aos bancos da universidade como professora substituta da pós-graduação em Ciências Sociais da UFRN, em 2011, Leilane abriu as portas da academia para outras Leilanes.

Naquele mesmo ano, a historiadora potiguar recebeu das mãos da então presidenta Dilma Rousseff o Prêmio Nacional de Direitos Humanos, representando a professora Berenice Bento, por defender os direitos dos travestis e transexuais.

A universidade foi um marco na vida pessoal e profissional de Leilane Assunção. Foi no setor II da UFRN, onde funciona a graduação do curso de História, que em 2004 Leandro completou a transição de gênero e passou a se reconhecer como Leilane.

Colega de turma na UFRN, a historiadora e pedagoga Danielle Moura acompanhou todo o processo:

- Estávamos na cantina tomando café, sem aula, quando Leilane comentou que não tinha roupas de menina. Nessa época eu havia engordado um pouco, juntei as roupas que não cabiam mais em mim e dei a ela. Eram calças, blusas, depois que ela passou a usar saias. Leilane ficou muito feliz e, a partir daí, foi adquirindo mais confiança, mais liberdade. Semana passada, com Leilane ainda no hospital, mandei uma mensagem de apoio e ela respondeu lembrando dessa história dizendo que havia sido um gesto de amor.

Nem todos os colegas entenderam o processo da passagem de Leandro para Leilane e houve certo distanciamento, especialmente de alguns homens da turma, lembra Danielle. Mas nada daquilo tirou o foco de Leilane, uma das melhores alunas da turma:

 - Ela sempre foi a melhor entre todos e sempre esteve à frente de tudo. Já naquela época queria ter direito à usar o banheiro feminino porque ela se reconhecia como mulher.

 Lina Albuquerque conheceu Leilane um pouco antes da transição de gênero. As duas fizeram vestibular para História juntas. A empatia foi instantânea, como conta a própria Lina, amiga que acompanhou toda a internação e o curto período de Leilane na UTI:

 - Leilane era tão poética... ligada aos sentimentos. Fez vestibular ao meu lado e naquele primeiro momento nos demos muito bem. Foi a pessoa mais inteligente que eu poderia conhecer. Leilane era extremamente humana, sensível, preocupada com os animais... a preocupação dela eram os gatos e a questão da empregabilidade. Foi uma referência para a comunidade LGBT e é uma perda acadêmica muito grande. Leilane estava cheia de expectativas e planos.

As lutas de Leilane

Leilane lutou pela vida e em vida. Após a fase de transição, travou uma batalha de 11 anos dentro da universidade para ser reconhecida pelo nome social. Nessa trajetória, processou a universidade mais de uma vez e passou denunciar o que chamava de transfobia institucional. Se queixava que a UFRN jamais a defendeu mesmo em casos de que foi vítima de preconceito dentro da própria instituição.

Como historiadora e ativista, acreditava na essência política dos movimentos. Tanto que bateu de frente e rompeu com o movimento LGBT do Rio Grande do Norte por achar que as lideranças do grupo despolitizaram ações como a parada do Orgulho LGBT. Segundo ela, as paradas teriam perdido o sentido quando passaram a oferecer apenas festa à sociedade.

Leilane levou a experiência frustrada com a comunidade LGBT para dentro de outro movimento: o anti-proibicionista, que defende a legalização e a descriminalização das drogas.

Em entrevista à agência Saiba Mais em outubro de 2017 Leilane destacou a diferença e o que imaginava de um movimento social:

- Quando a gente estava organizando o movimento antiproibicionista, um paradigma negativo era o movimento LGBT. Especialmente para não transformar a marcha da maconha num dia só de festa, num dia em que o maconheiro vai fumar. Tanto é que a gente criou o ciclo de debates antiproibicionista. Se a gente faz só a marcha e chama todo mundo para vir, as pessoas vão pensar que é uma grande festa. E não queremos que seja só isso. Queremos que quem esteja na marcha da maconha, ao ser abordado, tenha condições de explicar porque está ali. Porque é um ato político importante, ou seja, queríamos politizar a militância porque víamos que havia uma despolitização muito grande da população LGBT. Desafio qualquer jornalista a ir para a marcha da maconha ou para o ciclo de debates antiproibicionista e abordar qualquer pessoa perguntando porque ela está ali. Ela vai dizer. Mas se você for no Dia do Orgulho Gay e abordar um transeunte qualquer na parada, provavelmente a resposta será um clichê midiático pronto do tipo “estou aqui para arrasar”, “porque hoje vou fechar” ou “porque hoje é dia de poder, luxo e glamour”. Volto a dizer que não tenho nada contra isso. O problema é essa ênfase, que despolitiza.

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Luta de 11 anos para conquistar direito ao uso do nome social na UFRN

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Mesmo concluído o processo de transição de gênero, Leilane Assunção não conseguiu de início que a UFRN a reconhecesse como ela era. Foram 11 anos sem direito ao nome social. Na capa da tese de mestrado publicada em 2008, por exemplo, o passado ainda resistia e doía mesmo quatro anos após Leandro ter dado lugar a Leilane.

Em entrevista à agência Saiba Mais publicada em outubro de 2017, Leilane lembrou o paradoxo: ter que lutar por mais de uma década contra a instituição da qual fazia parte. Ela destacou, no entanto, que o fato de ter conquistado o direito ao uso do nome social não faz dela uma regra:

 - Eu vivi na UFRN 11 anos sem direito a nome social. Só tive o direito em 2011, quando aprovamos uma resolução nos conselhos superiores que dava direito a uma pessoa trans de usar nome social. Aí a pessoa diz: “está vendo, Leilane aguentou 11 anos”. Mas não sou a regra. E isso dá a ideia de que se eu aguentei, qualquer pessoa pode aguentar, e quem não aguenta é preguiçosa ou não quis estudar e estava procurando só uma desculpa. Eu aguentei e só eu sei a que preço, só eu sei as mágoas que guardei e carrego até hoje nesse processo. Sempre tendo a lucidez de que, se a escola era um lugar violento, a rua o seria ainda mais.

A universidade, para Leilane, nunca foi um espaço de acomodação. Ao contrário, a historiadora fazia questão de lembrar que sempre precisou se reafirmar em diferentes situações:

- Estou há 17 anos na UFRN, fiz toda minha formação aqui, da graduação ao doutorado, como professora substituta. E mesmo com todos os níveis de inserção me deparo cotidianamente com situações dentro da UFRN que me fazem não acreditar que estou vivendo aquilo.

Leilane chegou a processar a UFRN mais de uma vez por sofrer agressões e preconceito do corpo universitário. Porém, nunca achou que a culpa fosse individual porque, para ela, a universidade acaba reproduzindo preconceitos da sociedade e tem responsabilidade a partir do momento em que não apresenta um novo modelo de convivência:

- Recentemente eu processei a universidade porque uma técnica administrativa duvidou da minha identidade de professora. Me apresentei, disse que era professora da disciplina X e da sala Y e ela disse que não abriria a sala para mim porque eu estava mentindo. Ela concluiu isso: “travestis e transexuais não são professores de universidade”. São prostitutas, faxineiras, no máximo cabeleiras, isso quando são bem sucedidas. Aí a culpa é dela? Enquanto indivíduo não. Se eu faço uma análise como socióloga, não posso culpar o individuo. E ela está numa instituição de excelência, que tem um corpo docente de ponta nesse debate. Existe o professor Durval Muniz, tínhamos a professora Berenice Bento, o maior nome do país na discussão de transexualidade, Carla Giovana, Rita de Cássia, Leilane Assunção, temos um corpo docente apto a promover capacitação no âmbito da própria instituição. Mas a universidade acaba reproduzindo preconceitos da sociedade e não apresentando um novo modelo de convivência. Quando isso acontece, não é que seja uma política oficial do evento. É mérito dos indivíduos que conseguem colocar a instituição a serviço desses ideais em momentos pontuais.

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