Rio Grande do Medo
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5 de maio de 2018
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O Rio Grande do Norte encerrará este ano com o fracasso de uma gestão pública eleita para priorizar a Segurança. Quatro anos atrás, os cidadãos potiguares priorizaram a segurança pública em suas demandas por sobrevivência frente ao novo governo que iniciava. Marcados pela esperança de mudanças capazes de frear o crescimento vertiginoso da criminalidade urbana, apostaram em promessas de soluções imediatas para enfrentar um problema tão profundo e complexo como a violência urbana e rural. Mas para este tipo de problema, nada a curto prazo é significativo e eficaz. É preciso, antes de tudo, aceitar que precisamos iniciar hoje um amplo conjunto de ações que só resultarão em, no mínimo, uma década. A única certeza é que para enfrentar este problema é preciso três características aos gestores públicos: coragem, inteligência e boa vontade.

Todos os dias, de segunda a sexta-feira, tenho contato com aproximadamente 500 alunos que estudam à noite, após um dia com, no mínimo, duas horas no trânsito em um transporte público, oito horas de trabalho, uma caminhada de 20 a 30 minutos entre o ponto de ônibus e a faculdade, entre o ponto de ônibus e suas residências. Todos os dias, em sala de aula ou pelos aplicativos de mensagem, tomo conhecimento de alunos que antes ou após minhas aulas, são vítimas de assalto, muitas vezes à mão armada e com extrema violência. São pessoas que permanecem fora de casa por mais de dez ou doze horas, e o fazem não por feliz opção, mas por necessidade e esperança de uma vida melhor no futuro. A cada semestre, perco alunos que desistem da faculdade noturna por causa do risco da violência. Pessoas que poderiam ser bons administradores, bons contadores, bons assistentes sociais, bons enfermeiros, bons educadores, desistem dos seus sonhos não por um problema pessoal, mas por uma questão social que se arrasta no nosso país e que não parece estar perto de ser resolvida.

O problema de se viver em um estado como o Rio Grande do Norte, em especial, é que o futuro tem se transformado em uma questão de extrema incerteza. Com o crescimento tão acentuado de roubos, assaltos a mão armada e até homicídios, viver por aqui significa ter uma vida marcada pelo temor e quase garantia de ser a próxima vítima. E a depender de onde se mora, idade, condição social e econômica, há uma propensão até dez vezes maior de ser uma vítima em potencial. Quanto mais distante dos centros comerciais de alto padrão, dos bairros da elite econômica e da franja turística, mais chances um cidadão tem de ser vítima de um crime. As estatísticas nos mostram uma espécie de predestinação criminal. Alcançar este nível de complexidade, impõe-nos a dizer ou que não sabemos mais se temos um estado ou não. A criminalidade parece ter tomado o controle da vida das pessoas.

E neste cenário de medo e controle pela violência, a vida no campo não manteve-se protegida. Muito recentemente sondei uma propriedade em um distrito rural de um município do interior do estado. Fui surpreendido quando terrenos com imóveis construídos eram vendidos por três ou quatro mil reais. Muitos moradores do campo migraram para a cidade em busca de um pouco mais de segurança. Ser morador da zona rural implica estar largado à própria sorte. O crime que aterroriza nas maiores cidades do estado também chegou ao campo, pois viu lá, vítimas em potencial. Objetos de bom valor comercial como televisores, notebooks, celulares e dinheiro guardado em casa atraiu uma massa significativa de criminosos para atuarem nas regiões rurais. Campo e cidade marcados pelo medo.

Com todo este cenário traçado, sentimos que uma solução a curto prazo é algo praticamente ilusório. A criminalidade avançou a tal ponto que é preciso começar a fazer o que não foi feito dez ou vinte anos atrás para evitar que chegássemos a estes níveis. Existem saídas viáveis e existem medidas protelativas. Cabe à gestão pública arregaçar as mangas e enfrentar o problema de frente. Indicarei logo em seguida alguns caminhos, mas não asseguro a efetividade das mudanças se não partir de um amplo pacto do poder público com a sociedade. Transparência e controle social são fundamentais neste enfrentamento.

Algumas semanas atrás recebi um vídeo pelas redes sociais de três crianças de, no máximo, 11 anos de idade perseguirem outra que passava em uma bicicleta. Seria uma briga banal entre crianças, se uma delas não sacasse uma arma de fogo e atirasse na que estava na bicicleta. A vítima cai na calçada e aqueles que cometeram o crime correm como se estivessem tocando uma campainha de uma casa, sorrindo e com medo de serem pegos. Um deles gravou a “brincadeira”. A criança caída sobre uma rua lamacenta, sem calçada, suja e aparentemente sem iluminação pública. Enquanto sociólogo neguei pensar na dor dos familiares em terem um filho de 10 ou 11 anos assassinado pelos seus colegas de bairro da mesma idade e foquei no que estava por trás daquilo: um bairro sujo, com lama por todos os lados, falta de iluminação pública, falta de aparelhos de lazer e cultura, possivelmente falta de escolas, saúde e segurança. Além disso, uma criança de 11 anos de idade “brincava” com seus amigos portando uma arma de fogo na cintura. O cenário do crime parece ter sido sincronizado. Faltou tudo àquelas crianças. Faltou o Estado.

Enfrentar a violência não é fácil. É preciso fazer a cidadania sair do papel. É preciso praças equipadas com quadras esportivas, parques de diversão e caminhada e muitas plantas. Poucos bairros de periferia possuem. É preciso uma ou duas unidades básicas de saúde funcionando efetivamente em cada bairro. Médicos, enfermeiros, farmaceuticos, assistentes sociais e psicólogos atendendo a população. Poucos bairros possuem. É preciso ruas pavimentadas, saneadas e bem sinalizadas. Carros com velocidade controlada, sinais de trânsito nas maiores avenidas e transporte público circulando regularmente por todo o bairro. Poucos bairros possuem. É preciso escolas funcionando efetivamente. Professores com projetos de pesquisas junto aos seus alunos, atividades nos finais de semana, olimpíadas escolares, aulas de campo, laboratórios e cinema na escola e na praça. É preciso integração entre a escola e a comunidade. É preciso uma polícia militar visível, acessível e educada. Nos bairros da elite os policiais sabem dar boa noite quando chegam e vão embora de uma abordagem. Nos bairros pobres, tapas, chutes e muita humilhação.

Não é simples enfrentar a violência e o medo que ela propaga. Estudos já demonstram que o brasileiro têm tendências mais fortes a desenvolver fobias mais severas só pelo simples fato de viver em cidades marcadas pelos índices elevados da violência. Em outras palavras, a violência nos adoece.

É preciso fazer o básico para poder fazer o complexo. O enfrentamento às facções criminosas que atuam por todo o país deve ser feito, aliado às ações que permitam às pessoas saírem de casa vivas e retornarem também vivas. Investir em intervenções, tanques militares ou propagandas na televisão não fará com que a criminalidade diminua e muito menos que o medo das pessoas atenue, dado o nível que já chegamos. Certa vez perguntei a um secretário de Justiça e Cidadania porque não organizavam um grupo de inteligência para criar ações e políticas de segurança em vez de planos e medidas paliativas. Recebi como resposta uma gargalhada. Precisamos compreender que o uso da coragem, inteligência e boa vontade é uma decisão política. A cada dia que passa, percebemos que as chacinas, os assaltos a ônibus, as rebeliões, roubos de carro, homicídios, são também uma decisão política. A escolha por um estado violento por parte de um governo parece uma ideia de cinema. Mas precisamos acreditar: a violência é uma política pública. Ela elege muita gente, enriquece muita gente e é capaz de operar como instrumento de controle. As pessoas vivem tão acuadas que não conseguem reagir ao governo ineficiente. A violência é controle, é sangue e lágrimas aqui no Rio Grande do medo.

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