Santos e Revoltados
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28 de julho de 2020
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Uma das coisas boas, dentre as muitas, que meu pai fez por mim, foi cultivar o hábito de ler em voz alta os textos de Albert Camus, no original em francês, quando eu ainda era uma criança de colo.

O que a primeira vista poderia parecer algum tipo de divertimento mórbido (tendo em vista que submeter crianças a textos filosóficos existencialistas ainda na terna infância pode não ser uma prática muito recomendável) acabou me rendendo duas boas vantagens na vida adulta.

A primeira é que me acostumou com a prosódia da língua francesa, o que me faz, ainda hoje, quase trinta anos após ter frequentado apenas dois semestres do curso de Francês na Aliança Francesa de Natal, compreender um pouco do noticiário da TV5 e ler com alguma facilidade textos na língua de Voltaire (além de ter me permitido com razoável sucesso, vale lembrar, trocar algumas palavras com taxistas e garçons na vez que fui a Paris).

A segunda vantagem é que acabei por ter uma familiaridade quase instintiva com os textos de Albert Camus.

Sim, eu sei. Você deve estar se perguntando: que vantagem tem isso?

Para a maioria dos seres humanos normais talvez não haja vantagem alguma em compreender o que Camus estava tentando nos dizer ao escrever A queda, O estrangeiro, A peste ou O mito de Sísifo. No entanto, pra quem, como eu, resolveu em algum momento de desatino mercadológico seguir pelo caminho da filosofia profissional em um país como o Brasil, pode acreditar, isso é uma vantagem.

Lembro, por exemplo, que quando comprei por volta de 1998, na saudosa Poty Livros da rua Felipe Camarão, o livro O homem revoltado, publicado em 1951, ao ler logo a primeira frase da introdução que dizia: “Há crimes de paixão e há crimes de lógica”, me veio imediatamente à memória uma conversa que havia tido com um conhecido da TPOR (Tendência por um Partido Operário Revolucionário) nos corredores do setor II da UFRN. Na época eu o havia questionado: “e se essa sua revolução triunfar e eu mantiver essa minha postura contra revolucionária, o que iria acontecer comigo?”.

É bom recordar que naquele tempo, em que Bolsonaro era apenas um exótico e desconhecido deputado do baixo clero, representante das milícias cariocas ainda em gestação, eu costumava ser acusado de reacionário pequeno burguês pela esquerda revolucionária com a mesma frequência que sou hoje acusado de comunista-petista-gayzista pela fascistada bolsolavista das redes sociais.

Meu interlocutor pensou um pouco e olhou para mim com aquela faísca de convicção nos olhos e disse: “você teria de ser afastado do processo político”.

Sempre que me recordo desse tempo, vejo a semelhança entre a convicção que alguns colegas da militância tinham e as certezas que aqueles que se dizem cristãos tem quando falam da Bíblia.

Não é à toa. As conexões entre o fervor revolucionário e a religiosidade cristã já haviam sido detectados pelos observadores mais atentos, mesmo durante os anos iniciais da revolução russa. Boris Kolonitskii, num artigo na revista L´histoire publicado em fevereiro de 2017, descreve como os oradores mais fervorosos da revolução sabiam traduzir os eventos revolucionários em termos de metáforas religiosas. A derrocada da aristocracia era vista como um triunfo definitivo dos valores cristãos a partir da destruição dos ídolos e dos falsos deuses. Mesmo durante a guerra civil que se seguiu a tomada do poder pelos bolcheviques, os discursos feitos no pé da cova dos combatentes (um dos melhores palanques para demagogos de toda sorte) tratavam sobre a “destruição dos ídolos da arbitrariedade”, a “edificação do templo da verdade” e o “advento de uma era de amor, fraternidade e igualdade”. Imagens retóricas que lembravam, em muito, a noção de um reinado do Espírito Santo sobre a terra ou a edificação de uma Jerusalém Celestial em meio ao mundo dos homens. Durante a celebração da páscoa de 1918, por exemplo, sacerdotes mandaram levantar as bandeiras vermelhas sobre Igrejas de Petrogrado e se espalharam cartazes pela cidade com dizeres: “Cristo Ressuscitou! Viva a República!”.

Essa confluência do discurso político com o religioso mostra que, mesmo na base do acontecimento de 1917, já estava presente um elemento que permearia toda a experiência soviética: a paulatina substituição da religião na Rússia pela cultura da revolução.

A própria perseguição às crenças religiosas tradicionais, materializada na medida em que as relações entre o Estado soviético e a Igreja Ortodoxa russa degringolaram de vez, não é sinal de uma ruptura real do discurso revolucionário com o discurso religioso, mas sim, um sinal da substituição de um por outro, que lhe toma o lugar e ocupa sua função.

É nesse ponto em que os crimes de lógica se unem aos crimes de fé.

Afinal, faz parte do discurso religioso tanto a promessa do milagre quanto a justificativa, quando o milagre não vem, da sabotagem feita pelo “inimigo” em relação ao projeto de fé prometido e eternamente adiado.

É daí que aparece o elemento diabólico, o burguês, o judeu, o político, o esquerdista, o corrupto, o inimigo do povo, corruptor da nação, o Satanás da hora, que pode ter qualquer cor, qualquer forma, qualquer gênero, qualquer ideologia.

Mas não se engane, amigo velho, as conexões entre o imaginário do cristianismo ortodoxo russo e a ação revolucionária não aparecem apenas quando a revolução eclode em 1917.

Em 1863, Nicolai Tchernychevsky publicou um livro chamado “O que fazer? Sobre as histórias de novas pessoas”. Os efeitos desse texto entre a juventude russa só encontra paralelo com aqueles derivados dos romances de Rosseau publicados antes da revolução francesa. No livro, Tchernychevsky descrevia uma utopia socialista onde maravilhas tecnológicas se misturavam a bailes de máscara onde convidados dançavam, vestidos com mantos gregos. Enquanto Dostoievski, que em 1849 chegou às raias de quase ser executado por conspirar contra o Czar Nicolau I, satirizou claramente um dos personagens do livro de Tchernychevisky (o ascético revolucionário Rakchemetov) em seu livro de 1864, Memórias do Subsolo, a geração de estudantes universitários russos de 1860 e 1870, caminhou no sentido oposto.

No esteio da expansão das universidades por todo território do império a partir das reformas de Alexandre II, os jovens radicais russos sacralizavam a obra de Tchernychevsky e não davam muita bola para a crítica ácida de Dostoievski.

Essa geração imbuiu-se da tarefa de estabelecer uma ponte entre os intelectuais e o povo (narod) e mantiveram uma perspectiva de critica tanto à industrialização capitalista quanto ao marxismo positivista daqueles anos. Os narodniki (chamados pelos marxistas russos pejorativamente de “populistas”) idealizavam a vida campesina e nutriam uma perspectiva místico-romântica da tarefa revolucionária. Entre 1873 e 1874 milhares de jovens universitários e intelectuais russos migraram das cidades para o campo em busca de redimir povo e pregar para os camponeses o advento de uma nova era.

Eles retomavam a imagem dos apóstolos e das ações missionárias que povoavam o imaginário do cristianismo russo. Muito mais parecido com uma peregrinação religiosa do que com uma campanha política, o movimento dos narodniki buscava também uma redenção escatológica do corrupto e decadente mundo urbano. A ideia era a busca por uma reeducação, um aprendizado que o contato com “a pureza perdida do povo” poderia proporcionar às classes pequeno burguesas urbanizadas, contaminadas pelos valores de uma aristocracia decadente.

O movimento fracassou de modo vexatório. Os camponeses, desconfiados, viam os peregrinos como inimigos de classe, membros da mesma e odiada aristocracia que os oprimia. Isso fez com que muitos narodniki fossem denunciados à polícia política do Czar, presos e alguns executados pelo regime, que buscava controlar com mão forte as agitações no campo que seguiram as reformas de Alexandre II.

Mas você pensa que isso diminuir o fervor da moçada?

De jeito nenhum. Só aumentou o caráter religioso dos adeptos do movimento, que se viam agora como uma versão laica do sacrifício que os primeiros santos e mártires cristãos tiveram de fazer ao tentar converter aos ensinamentos de Cristo os povos pagãos das estepes russas.

Albert Camus já sabia, ao escrever O homem revoltado, que toda revolta contém uma base metafísica. Ele entendeu cedo que “a alma” do povo russo, com seu cristianismo atávico, não havia sido transformada substancialmente com a revolução. Ele enxergou muito antes do seu amigo Jean Paul Sartre (que rompeu com ele no período que se seguiu a publicação do texto), que uma das razões do fracasso da experiência soviética se encontrava em gênese na incapacidade da experiência revolucionária superar suas próprias bases metafísicas.

No famoso, Catecismo revolucionário, escrito por Seguei Nechavev em 1869, o santo revoltado é descrito como “(...)um homem condenado. Não tem nada próprio, nem interesses, nem assuntos, nem sentimentos, nem propriedade, nem sequer tem um nome”, ele rompe qualquer vínculo, quer seja com as leis, as propriedades, convenções ou moralidades deste mundo. Esse asceta da revolução, guarda semelhanças muito profundas e bem pouco exploradas com o Abraão, descrito por Kiekegaard, no seu livro Temor e Tremor de 1843. O homem que faz o salto no abismo da fé a partir de uma suspensão teológica da moralidade e leva seu filho para o sacrifício confiando cegamente em um Deus que se comporta de modo completamente incompreensível.

Em um tempo em que a religião e a política se reencontram, buscando seus messias particulares (na maioria das vezes falsos e fajutos), anunciando suas novas fogueiras santas e recolocando no cenário público discursos de redenção e purgação é sempre bom lembrar que as bases teológicas e metafísicas das revoluções justificaram tanto os crimes de lógica quanto os crimes de fé.

Como Camus bem sabia no pós guerra, recuperar alguma lucidez perdida e reestabelecer o comedimento da política, em meio a tempos conturbados, é sempre uma aposta necessária, um esforço derradeiro da esperança, para que a história não continue a se repetir sempre como tragédia.

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